Salmo 50(51)

Tende piedade de mim, Senhor

1. É a quarta vez que ouvimos, durante estas nossas reflexões sobre a Liturgia das Laudes, a proclamação do Salmo 50, o célebre Miserere. De fato, ele é proposto de novo na sexta-feira de cada semana, para que se torne um oásis de meditação, onde descobrir o mal que se esconde na consciência e invocar do Senhor a purificação e o perdão. Com efeito, como confessa o Salmista noutra súplica, "nenhum vivente é justo na Vossa presença", ó Senhor (Sl 142, 2). No Livro de Jó lê-se: "Como, pois, pode justificar-se o homem diante de Deus? Como será puro o homem nascido da mulher? Até a própria luz não brilha e as estrelas não são puras aos Seus olhos! Quanto menos o homem, simples verme, e o filho do homem, mero vermezinho!" (25, 4-6). Estas são frases fortes e dramáticas, que querem mostrar em toda a seriedade e gravidade o limite e a fragilidade da criatura humana, a sua capacidade perversa de semear o mal e a violência, a impureza e a mentira. Contudo, a mensagem de esperança do Miserere, que o Saltério coloca nos lábios de Davi, pecador convertido, é esta: Deus pode "apagar, lavar, purificar" a culpa confessada com o coração contrito (cf. Sl 50, 2-3). Diz o Senhor através da voz de Isaías: "Mesmo que os vossos pecados fossem como escarlate, tornar-se-iam brancos como a neve" (1, 18).

2. Deter-nos-emos desta vez brevemente no fim do Salmo 50, um fim cheio de esperança porque o orante é consciente de ter sido perdoado por Deus (cf. vv. 17-21). Agora, os seus lábios preparam-se para proclamar ao mundo o louvor ao Senhor, confirmando desta forma a alegria que experimenta a alma purificada do mal e, por isso, libertada dos remorsos (cf. v. 17). O orante testemunha de modo claro outra convicção, relacionando-se com o ensinamento reiterado pelos profetas (cf. Is 1, 10-17; Am 5, 21-25; Os 6, 6): o sacrifício mais agradável que se eleva ao Senhor como perfume e fragrância agradável (cf. Gn 8, 21) não é o holocausto de touros ou de cordeiros mas, antes, o "coração quebrantado e humilhado" (Sl 50, 19). A Imitação de Cristo, texto tão querido à tradição espiritual cristã, repete a mesma admoestação do Salmista: "A humilde contrição dos pecados é um sacrifício que te é agradável, um perfume muito mais suave do que o fumo do incenso... Ali purifica-se e lava-se qualquer iniqüidade" (III, 52, 4).

3. O Salmo conclui-se de maneira inesperada, com uma perspectiva completamente diferente, que até parece contraditória (cf. vv. 20-21). Da última súplica de um só pecador passa-se a uma oração pela reconstrução de toda a cidade de Jerusalém, o que nos leva da época de Davi à da destruição da cidade, alguns séculos mais tarde. Por outro lado, depois de ter expresso no v. 18 a recusa divina das imolações de animais, o Salmo anuncia no v. 21 que estas mesmas imolações serão agradáveis a Deus. É evidente que esta passagem final é um acréscimo posterior, feito no tempo do exílio, que quer, num certo sentido, corrigir ou pelo menos completar a perspectiva do Salmo de Davi. E isto, sob dois aspectos: por um lado, não se quis que todo o Salmo se limitasse a uma oração individual; era necessário pensar também na situação piedosa de toda a cidade. Por outro lado, quis-se reduzir a recusa divina dos sacrifícios rituais; esta recusa não podia ser completa nem definitiva, porque se tratava  de um culto prescrito pelo próprio Deus na Tora. Quem completou o Salmo teve uma intuição válida: compreendeu a necessidade em que se encontravam os pecadores, a necessidade de uma mediação sacrifical. Os pecadores não são capazes de se purificarem sozinhos; não bastam bons sentimentos. É preciso uma mediação externa eficaz. O Novo Testamento revelará o sentido pleno desta intuição, mostrando que, com a oferta da sua vida, Cristo realizou uma mediação sacrifical perfeita.

4. Nas suas Homilias sobre Ezequiel, São Gregório Magno compreendeu bem a diferença de perspectiva que existe entre os vv. 19 e 21 do Miserere. Ele propõe uma interpretação da mesma, que podemos acolher também, concluindo assim a nossa reflexão. São Gregório aplica o v. 19, que fala de espírito contrito, à existência terrena da Igreja e o v. 21, que fala de holocausto, à Igreja no céu. Eis as palavras daquele grande Pontífice: "A santa Igreja tem duas vidas: uma que conduz no tempo, outra que recebe eternamente; uma com a qual fadiga na terra, outra que é recompensada no céu; uma com a qual reúne os méritos, outra que já goza dos méritos recolhidos. E tanto numa como noutra vida oferece o sacrifício: aqui o sacrifício da contrição e lá no céu o sacrifício do louvor. Está escrito acerca do primeiro sacrifício: "O meu sacrifício, Senhor, será o meu espírito contrito" (Sl 50, 19); acerca do segundo está escrito: "Então agradecereis as ofertas puras, sacrifícios e holocaustos" (Sl 50, 21)... Os dois oferecem a carne, porque aqui a oblação da carne é a mortificação do corpo, no céu a oblação da carne é a glória da ressurreição no louvor a Deus. No céu oferecer-se-á a carne como que em holocausto quando, transformada na incorruptibilidade eterna, não haverá mais conflito algum e nada será mortal, porque perdurará totalmente acesa de amor por ele, no louvor sem fim" (Homilias sobre Ezequiel/2, Roma 1993, pág. 271).

João Paulo II, Quarta-feira, 30 de Julho de 2003

Tb 13,8-11.13-14.15-16

Ação de graças pela libertação do povo

1. A Liturgia das Laudes inclui entre os seus Cânticos o fragmento de um hino, colocado como selo da história narrada pelo Livro bíblico de Tobias: escutamo-lo há pouco. O hino, bastante amplo e solene, é uma expressão típica da oração e da espiritualidade judaica, que se inspira noutros textos já presentes na Bíblia. O Cântico desenvolve-se através de uma dupla invocação. Sobressai em primeiro lugar um convite reiterado a louvar Deus (cf. vv. 3.4.7) pela purificação que ele está realizando com o exílio. Os "filhos de Israel são exortados a aceitar esta purificação com uma conversão sincera (cf. vv. 6.8). Se a conversão florescer nos corações, o Senhor fará surgir no horizonte o alvorecer da libertação. É precisamente neste clima espiritual que se situa o início do Cântico que a Liturgia tirou do hino mais amplo do capítulo 13 de Tobias.

2. A segunda parte do texto, entoada pelo idoso Tobite, protagonista de todo o Livro com o filho Tobias, é uma verdadeira e própria celebração de Sião. Ela reflete a nostalgia apaixonada e o amor ardente que o hebreu da Diáspora sente em relação à cidade santa (cf. vv. 9-18). Este aspecto brilha no âmbito do trecho que foi escolhido como oração matutina da Liturgia das Laudes. Detenhamo-nos nestes temas, ou seja, na purificação do pecado através da prova e da expectativa do encontro com o Senhor, à luz de Sião e do seu templo santo.

3. Tobite dirige um apelo caloroso aos pecadores para que se convertam e pratiquem a justiça: este é o caminho que se deve empreender para reencontrar o amor divino que dá serenidade e esperança (cf. v. 8). A própria história de Jerusalém é uma parábola que ensina a todos que opção fazer. Deus castigou a cidade porque não podia permanecer indiferente perante o mal perpetrado pelos seus filhos.  Mas  agora,  vendo que  muitos se converteram e se transformaram em filhos justos e fiéis, ele manifestará de novo o seu amor misericordioso (cf. v. 10). Ao longo de todo o Cântico do capítulo 13 de Tobias repete-se com freqüência esta convicção: o Senhor "castiga e compadece-Se... castiga por causa das nossas iniqüidades mas, a seguir, compadece-Se de nós... Ele castigou-te por causa das tuas obras... os filhos dos justos serão congregados e louvarão o Senhor" (vv. 2.5.11.15). Deus recorre ao castigo e outras admoestações como meio para congregar na reta via os pecadores surdos. A última palavra do Deus justo é, contudo, a do amor e do perdão; o seu desejo profundo é poder abraçar  de  novo  os  filhos  rebeldes que voltam para Ele com o coração arrependido.

4. Em relação ao povo eleito, a misericórdia divina manifestar-se-á com a reconstrução do Templo de Jerusalém, realizada pelo próprio Deus: "Porque o teu tabernáculo será reconstruído com júbilo" (v. 11). Desta forma, começa o segundo tema, o de Sião, como lugar espiritual para o qual deve convergir não só a volta dos hebreus mas também a peregrinação dos povos que procuram Deus. Desta forma, abre-se um horizonte universalista: reconstruído, o templo de Jerusalém, sinal da palavra e da presença divina, resplandecerá com uma luz planetária que abrirá as trevas, para que possam pôr-se a caminho "numerosos povos, até às extremidades da terra" (cf. v. 13), trazendo oferendas e cantando a sua alegria por participar na salvação que o Senhor concede a Israel. Por conseguinte, os Israelitas e todos os povos estão a caminho juntos, rumo a uma única meta de fé e de verdade. O cantor deste hino faz descer sobre eles uma bem-aventurança repetida, dizendo a Jerusalém: "Ditosos aqueles que te amam, e ditosos os que se alegram pela tua prosperidade!" (v. 16). A felicidade é autêntica quando se encontra a luz que resplandece no céu de todos os que procuram o Senhor com o coração purificado e com o anseio da verdade.

5. É a esta Jerusalém, livre e gloriosa, sinal da Igreja na meta derradeira da sua esperança, prefigurada pela Páscoa de Cristo, que Santo Agostinho se dirige com fervor no Livro das Confissões. Referindo-se à oração que ele deseja realizar no seu "quarto secreto", descreve-nos aquelas "canções de amor entre os gemidos, os inarráveis gemidos que durante a minha peregrinação suscita a recordação no coração orientado para o alto em direção a ela, Jerusalém a minha pátria, Jerusalém a minha mãe, e para Ti, o seu soberano, o seu iluminador, o seu pai, tutor e esposo, as suas castas e grandes delícias, a sua sólida alegria e todos os seus bens inefáveis". E conclui com uma promessa: "Não me afastarei de ti, enquanto na paz daquela mãe caríssima, onde se encontram as primícias do meu espírito, de onde me vêm estas certezas, Tu não tiveres reunido tudo o que eu sou a partir desta dispersão desvirtuada, para o conformar definitivamente na eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia" (Confissões, 12, 16, 23, Roma 1965, págs. 424-425).

João Paulo II, Quarta-feira, 13 de Agosto de 2003

Salmo 147(147B)

A Jerusalém reconstruída

1. O Salmo que agora foi proposto à nossa meditação constitui a segunda parte do precedente Salmo 146. As antigas traduções grega e latina, seguidas pela Liturgia, consideraram-no, ao contrário, como um cântico separado, porque o seu começo se distingue totalmente da parte anterior. Este começo tornou-se célebre também porque com freqüência é usado na música latina: Lauda, Jerusalem, Dominum. Estas palavras iniciais constituem o típico convite dos  hinos  sálmicos  para  celebrar  e louvar o Senhor:  agora Jerusalém, personificação do povo, é interpelada para que exalte e glorifique o seu Deus (cf. 147, 12).

Imediatamente se menciona o motivo pelo qual a comunidade orante deve elevar ao Senhor o seu louvor. Este é de índole histórica: foi Ele, o Libertador de Israel do exílio na Babilônia, que deu segurança ao seu povo, fortificando “os ferrolhos das portas” da cidade (cf. v. 13). Quando Jerusalém tinha sucumbido sob o assalto do exército do rei Nabucodonosor, em 586 a.C., o livro das Lamentações apresentou o próprio Senhor como juiz do pecado de Israel, enquanto demolia “os muros da filha de Sião... Jazem sob os escombros as suas portas; quebrou-as, partindo as trancas” (Lm 2, 8.9). Agora, ao contrário, o Senhor volta a ser o construtor da cidade santa; no templo reconstruído Ele abençoa de novo os seus filhos. Desta forma, é mencionada a obra realizada por Neemias (cf. Ne 3, 1-38), que tinha restabelecido os muros de Jerusalém, para que voltasse a ser um oásis de serenidade e de paz.

2. A paz, salum, de fato é imediatamente evocada, também porque está contida de modo simbólico no próprio nome Jerusalém. Já o profeta Isaias prometia à cidade:  "porei por teu governador a paz, por teu magistrado a justiça" (60, 17). Mas, além de fazer reconstruir os muros da cidade, de a abençoar e de a pacificar na segurança, Deus oferece a Israel outros dons fundamentais: é o que se descreve no fim do Salmo. De fato, ali são recordados os dons da Revelação, da Lei e das prescrições divinas: "Ele revela os Seus planos a Jacó, os Seus preceitos e leis a Israel" (Sl 147, 19). Celebra-se, assim, a eleição de Israel e a sua missão única entre os povos: proclamar ao mundo a Palavra de Deus. É uma missão profética e sacerdotal, porque "qual é o grande povo, que possui mandamentos e preceitos tão justos como esta Lei que hoje vos apresento?" (Dt 4, 8). Através de Israel e, por conseguinte, também através da comunidade cristã, ou seja, da Igreja, a Palavra de Deus pode ressoar no mundo e tornar-se norma e luz de vida para todos os povos (cf. Sl 147, 20).

3. Até agora descrevemos a primeira razão do louvor que devemos elevar ao Senhor: é uma motivação histórica, isto é, relacionada à ação libertadora e reveladora a respeito do seu povo. Mas existe outra fonte de exultação e de louvor: ela é de índole cósmica, ou seja, relacionada à ação criadora de Deus. A Palavra divina irrompe para dar vida ao ser. Semelhante a um mensageiro, ela corre pelos espaços imensos da terra (cf. Sl 147, 15). E imediatamente se dá um florescimento de maravilhas. Eis que chega o Inverno que é descrito nos seus fenômenos atmosféricos com uma tonalidade poética: a neve é semelhante à la devido ao seu candor, a geada com os seus pingos subtis é como a poeira do deserto (cf. v. 16), o granizo assemelha-se às migalhas de pão que caem no chão, o gelo coalha a terra e impede a vegetação (cf. v. 17). É um quadro invernal que convida a descobrir as maravilhas da criação e que será retomado numa página muito pitoresca também por um livro bíblico, o de Sirácide (cf. 43, 18-20).

4. Mas eis que, sempre pela ação da Palavra divina, volta a Primavera: o gelo derrete-se, o vento quente sopra e faz fluir a água (cf. Sl 147, 18), repetindo assim o ciclo perene e, por conseguinte, a própria possibilidade de vida para homens e mulheres. Naturalmente não faltaram leituras metafóricas destes dons divinos. O "grão de mostarda" fez pensar no grande dom do pão eucarístico. Aliás, o importante escritor cristão do terceiro século, Orígenes, identificou aquela mostarda como o sinal do próprio Cristo e, em particular, da Sagrada Escritura. Eis o seu comentário: "Nosso Senhor é o grão de mostarda que cai na terra, e que se multiplica para nós. Mas este grão de mostarda é superlativamente abundante... A palavra de Deus é superlativamente abundante, contém em si todas as delicias. Tudo o que desejas, provém da Palavra de Deus, da mesma forma que os Judeus narram: quando comiam o maná, ele, na sua boca, adquiria o gosto daquilo que cada um desejava... Assim, também na carne de Cristo, que é a palavra do ensinamento, ou seja, a compreensão das Sagradas Escrituras, quanto maior for o desejo que dela tivermos, tanto maior será o alimento que dela receberemos. Se és santo, encontras refrigério; se és pecador, encontras o tormento" (Orígenes Jerônimo, 74 homilias sobre o livro dos Salmos, Milão 1993, págs. 543-544).

5. Por conseguinte, o Senhor age com a sua Palavra não só na criação, mas também na história. Ele revela-se com uma linguagem muda (cf. Sl 18, 2-7), mas exprime-se de modo explicito através da Bíblia e da sua comunicação pessoal nos profetas e em plenitude no Filho (cf. Hb 1, 1-2). São dois dons diferentes, mas convergentes, do seu amor. Por isso, o nosso louvor deve elevar-se ao céu todos os dias. É a nossa ação de graças, que floresce no alvorecer na oração das Laudes para bendizer o Senhor da vida e da liberdade, da existência e da fé, da criação e da redenção.

João Paulo II, Quarta-feira, 20 de Agosto de 2003