1. Em dois diferentes momentos, a Liturgia das Vésperas --cujos salmos e cânticos estamos meditando-- nos propõe a leitura de um hino sapiencial de límpida beleza e de intenso impacto emotivo, o Salmo 138. Ante nós temos hoje a primeira parte da composição (Cf. versículos 1-12), ou seja, as duas primeiras estrofes que exaltam respectivamente a onisciência de Deus (Cf. versículos 1-6) e sua onipotência no espaço e no tempo (Cf. versículos 7-12).
O vigor das imagens e das expressões tem como objetivo a celebração do Criador: «Se as obras criadas são tão grandes --afirma Teodoreto de Ciro, escritor cristão do século V-- que grande tem de ser seu Criador!» («Discursos sobre a Providência» -- «Discorsi sulla Provvidenza» --, 4: «Collana di Testi Patristici», LXXV, Roma 1988, p. 115). A meditação do salmista busca sobretudo penetrar no mistério do Deus transcendente, que ao mesmo tempo está perto de nós.
2. A essência da mensagem que nos apresenta é clara: Deus sabe tudo e está presente junto a sua criatura, eu não se pode subtrair dEle. Sua presença não é ameaçadora nem quer controlar, ainda que certamente seu olhar também é severo com o mal, ante o qual não é indiferente.
Contudo, seu elemento fundamental é o de uma presença salvífica, capaz de abarcar todo o ser e toda a história. Em poucas palavras, é o cenário ao que alude São Paulo ao falar no Areópago de Atenas, quando cita um poeta grego: «nEle vivemos, movemo-nos e existimos» (Atos 17, 28).
3. A primeira passagem (Cf. Salmo 138, 1-6), como dizia, é a celebração da onisciência divina: repetem-se, de fato, os verbos do conhecimento como «sondar», «conhecer», «penetrar», «saber». Como é sabido, o conhecimento bíblico vai mais além do mero aprender e compreender intelectual; é uma espécie de comunhão entre o que conhece e o conhecido: o Senhor está, portanto, em intimidade conosco, durante nosso pensar e atuar.
À onipresença divina se dedica a segunda passagem de nosso Salmo (Cf. versículos 7-12). Descreve-se de maneira palpitante a ilusória vontade do homem de subtrair-se dessa presença. Todo o espaço fica abarcado: antes de tudo, o eixo vertical «céu-abismo» (Cf. versículo 8), e depois a dimensão horizontal, a qual vai desde a aurora, ou seja, do oriente, até chegar ao «confim do mar» Mediterrâneo, ou seja, o Ocidente (cf. versículo 9). Cada um dos âmbitos do espaço, inclusive o mais secreto, contém uma presença ativa de Deus.
O salmista introduz também a outra realidade na qual estamos submersos, o tempo, simbolicamente representado pela noite e a luz, a treva e o dia (cf. versículos 11-12). Inclusive a escuridão, na qual é difícil avançar e ver, está penetrada pelo olhar e pela manifestação do Senhor do ser e do tempo. Sempre está disposto a tomar-nos pela mão para guiar-nos em nosso caminho terreno (Cf. versículo 10). Portanto, não é uma proximidade de juízo que causa terror, mas de apoio e libertação.
Deste modo, podemos compreender qual é o conteúdo último, essencial, deste salmo: é um canto de confiança: Deus está sempre conosco. Inclusive nas noites escuras de nossa vida, não nos abandona. Inclusive nos momentos difíceis, está presente. E inclusive na última noite, na última solidão na qual ninguém pode acompanhar-nos, na noite da morte, o Senhor não nos abandona. Acompanha-nos também nesta última solidão da noite da morte. E por este motivo nós, cristãos, podemos ter confiança: nunca estamos sós. A bondade de Deus sempre está conosco.
4. Começamos com uma citação do escritor cristão Teodoreto de Ciro. Concluímos agora encomendando-nos a ele e a seu «Quarto Discurso sobre a Providência» divina, pois, em definitivo, este é o tema do Salmo. Reflete no versículo 6, no qual o orante exclama: «Tanto saber me ultrapassa, é sublime, e não o abarco». Teodoreto comenta esta passagem aprofundando na interioridade da consciência e da experiência pessoal e afirma: «Recolhido em mim mesmo e entrando em minha própria intimidade, afastando-me dos rumores externos, quis submergir-me na contemplação de minha natureza... Refletindo nisto e pensando na harmonia entre a natureza mortal e imortal, fiquei compungido por tanto prodígio e, ao não conseguir contemplar este mistério, reconheço meu fracasso; e mais, enquanto proclamo a vitória da sabedoria do Criador e canto a ele hinos de louvor, grito: «Tanto saber me ultrapassa, é sublime, e não o abarco» («Collana di Testi Patristi», LXXV, Roma 1988, pp. 116.117).
Quarta-feira, 14 de dezembro de 2005
1. Nesta Audiência geral da quarta-feira da Oitava de Natal, festa litúrgica dos Santos Inocentes, retomamos a nossa meditação sobre o Salmo 138, cuja leitura orante é proposta pela Liturgia das Vésperas em duas etapas distintas. Depois de ter contemplado na primeira parte (cf. vv. 1-12) o Deus onisciente e onipotente, Senhor da existência e da história, agora este hino sapiencial de intensa beleza e paixão indica a realidade mais alta e admirável de todo o universo, o homem, definido como o "prodígio" de Deus (cf. v. 14). Trata-se, na realidade, de um tema profundamente em sintonia com o clima natalício que estamos vivendo nestes dias, em que celebramos o grande mistério do Filho de Deus que se fez homem, aliás, que se fez Menino para a nossa salvação.
Depois de ter considerado o olhar e a presença do Criador, que abrangem todo o horizonte cósmico, na segunda parte do Salmo que hoje meditamos, os olhos amáveis de Deus voltam-se para o ser humano, considerado na sua origem plena e completa. Ele ainda está "sem forma" no útero materno: o vocábulo hebraico usado é entendido por alguns estudiosos da Bíblia remissivo ao "embrião", descrito como uma pequena realidade oval, envolvida em si mesma, mas sobre a qual já se coloca o olhar benévolo e amoroso dos olhos de Deus (cf. v. 16).
2. Para definir a ação divina dentro do ventre materno, o Salmista recorre às clássicas imagens bíblicas, enquanto a cavidade geradora da mãe é comparada com as "profundezas da terra", ou seja, com a vitalidade constante da grande mãe-terra (cf. v. 15). Antes de mais nada, há o símbolo do oleiro e do escultor que "forma", plasma a sua criação artística, a sua obra-prima, exatamente como se dizia no livro da Gênesis, para a criação do homem: "O Senhor plasmou o homem com pó do solo" (Gn 2, 7). A seguir, há o símbolo "têxtil" que evoca a delicadeza da pele, da carne, dos nervos "tecidos" no esqueleto ósseo. Também Jó evoca com força estas e outras imagens para exaltar aquela obra-prima que é a pessoa humana, apesar de ser golpeada e ferida pelo sofrimento: "As tuas mãos formaram e modelaram todo o meu ser... Lembra-te de que me fizeste do barro... Não me derramaste como leite e me coalhaste como queijo? Revestiste-me de pele e carne, e teceste-me de ossos e nervos" (Job 10, 8-11).
3. Extremamente poderosa é, no nosso Salmo, a idéia de que o Deus daquele embrião ainda "sem forma" já veja todo o futuro: no livro da vida do Senhor já estão inscritos os dias que aquela criatura viverá e cumulará de obras durante a sua existência terrena. Assim, volta a emergir a grandeza transcendente do conhecimento divino, que não abraça somente o passado e o presente da humanidade, mas também o arco ainda escondido do futuro. Mas manifesta-se também a grandeza desta pequena criatura humana nascitura, formada pelas mãos de Deus e rodeada pelo seu amor: um elogio bíblico do ser humano, desde o primeiro momento da sua existência.
Agora, gostaríamos de confiar-nos à reflexão que São Gregório Magno, nas suas Homilias sobre Ezequiel, teceu sobre a frase do Salmo, que antes comentamos: "Os teus olhos viam as minhas ações e eram todas escritas no teu livro" (v. 16). Sobre estas palavras o Pontífice e Padre da Igreja edificou uma meditação original e delicada, relativa àqueles que, na Comunidade cristã, são mais frágeis no seu caminho espiritual.
E diz também que os indivíduos frágeis na fé e na vida cristã fazem parte da arquitetura da Igreja. E continua: "Contudo, nela são incluídos... em virtude da boa vontade. É verdade, são imperfeitos e pequenos, mas naquilo que conseguem compreender, amam a Deus e o próximo e não deixam de realizar o bem que podem. Embora ainda não alcancem os dons espirituais, a ponto de abrir a alma à ação perfeita e à contemplação ardente, todavia não renunciam ao amor a Deus e ao próximo, na medida em que são capazes de o compreender. Por isso, ainda que ocupem um lugar menos importante, é verdade que também eles contribuem para a edificação da Igreja porque, embora sejam inferiores por doutrina, profecia, graça dos milagres e desprezo completo pelo mundo, todavia estão alicerçados sobre o fundamento do temor e do amor, onde encontram a própria solidez" (2, 3, 12-13, Obras de Gregório Magno, III/2, Roma 1993, pp. 79.81).
Assim, a mensagem de São Gregório torna-se uma grande consolação para todos nós que, frequentemente, progredimos com dificuldade ao longo do caminho da vida espiritual e eclesial. O Senhor conhece todos nós e circunda-nos com o seu amor.
Quarta-feira, 28 de dezembro de 2007