<head> <meta content="text/html; charset=UTF-8" http-equiv="Content-Type"> <title>Catequeses</title>

Salmo 26(27),1-6

Confiança em Deus ante o perigo

1. Nosso percurso por meio das Vésperas reinicia hoje com o Salmo 26, que a liturgia distribui em duas passagens. Refletiremos agora sobre a primeira parte deste dítico poético e espiritual (Cf. versículos 1-6) que tem como pano de fundo o templo de Sião, sede do culto de Israel. De fato, o salmista fala explicitamente da «casa do Senhor», do «templo» (versículo 4), da «morada» (Cf. versículos 5-6). No original hebraico, estes termos indicam mais precisamente o «tabernáculo» e a «tenda», ou seja, o próprio coração do templo, no qual o Senhor se revela com sua presença e palavra. Evoca-se também a «rocha» de Sião (Cf. versículo 5), lugar de segurança e de refúgio, e alude-se à celebração dos sacrifícios de ação de graças (Cf. versículo 6). Se a liturgia é a atmosfera espiritual na qual está submergido o Salmo, o fio condutor da oração é a confiança em Deus, seja no dia da alegria, seja nos momentos de medo.

2. A primeira parte do Salmo, que agora meditamos, está marcada por uma grande serenidade, baseada na confiança em Deus no dia tenebroso do assalto dos malvados. As imagens utilizadas para descrever estes adversários, que são o sinal do mal que contamina a história, são de duas classes. Por um lado, parece apresentar-se uma imagem de caça feroz: os malvados são como feras que avançam para agarrar sua presa e desgarrar sua carne, mas tropeçam e caem (Cf. versículo 2). Por outro lado, apresenta-se o símbolo militar de um assalto de toda uma armada: é uma batalha que estoura com ímpeto semeando terror e morte (Cf. versículo 3).

A vida do crente é submetida com freqüência a tensões e contestações, em certas ocasiões também à rejeição e inclusive à perseguição. O comportamento do homem justo aborrece, pois ressoa como uma advertência para os prepotentes e perversos. Reconhecem isso sem ambigüidade os ímpios descritos pelo Livro da Sabedoria: o justo «tornou-se censura para nossos pensamentos e simplesmente vê-lo já é insuportável; sua vida é muito diferente da dos outros e seus caminhos vão a outra direção» (Sabedoria 2, 14-15).

3. O fiel é consciente de que a coerência cria isolamento e provoca inclusive desprezo e hostilidade em uma sociedade que escolhe com freqüência como padrão a vantagem pessoal, o êxito exterior, a riqueza, o prazer desenfreado. Contudo, ele não está só e seu coração mantém uma paz interior surpreendente, pois --como diz a esplêndida «antífona» de abertura do Salmo-- «O Senhor é minha luz e minha salvação» (Salmo 26,1). Repete continuamente: «a quem temerei?… quem me fará tremer?… meu coração não treme… sinto-me tranqüilo» (versículos 1 e 3). Parece ser um eco das palavras de São Paulo: «Se Deus é por nós, quem estará contra nós?» (Romanos 8, 31). Mas a tranqüilidade interior, a fortaleza de espírito e a paz são um dom que se obtém refugiando-se no templo, ou seja, recorrendo à oração pessoal e comunitária.

4. Quem ora, de fato, põe-se nas mãos de Deus e seu sonho fica expressado também por outro Salmo (Cf. 22, 6): «habitarei na casa do Senhor por anos sem fim». Então poderá «gozar da doçura do Senhor» (Salmo 26, 4), contemplar e admirar o mistério divino, participar na liturgia do sacrifício e elevar seus louvores ao Deus de paz, que exclui o estrondo do mal. A comunhão com Deus é manancial de serenidade, de alegria, de tranqüilidade; é como entrar em um oásis de luz e de amor.

5. Escutemos como conclusão de nossa reflexão as palavras do monge Isaías, de origem síria, que viveu no deserto egípcio e morreu em Gaza no ano 491. Em seu «Ascenticon», aplica nosso Salmo à oração na tentação: «Se vemos que os inimigos nos rodeiam com sua astúcia, ou seja, com a acídia, debilitando nossa alma no prazer, seja porque não contemos nossa cólera contra o próximo quando atua contra seu dever, ou se tentam nossos olhos com a concupiscência, ou se querem levar-nos a experimentar os prazeres de gula, se fazem que para nós a palavra do próximo seja como o veneno, se nos fazem desvalorizar a palavra dos demais, se nos induzem a diferenciar os irmãos dizendo: “Este é bom, este é mal”, se nos rodeiam deste modo, não nos desalentemos, mas, gritemos como Davi com coração firme dizendo: “O Senhor é a defesa de minha vida” (Salmo 26, 1)» («Recueil ascétique», Bellefontaine 1976, p. 211).

Quarta-feira, 21 de abril de 2004

Salmo 26(27),7-14

Ternura de Deus, confiança do crente

1. A Liturgia das Vésperas dividiu em duas partes o Salmo 26, seguindo a própria estrutura do texto. Acabamos de proclamar a segunda parte deste canto de confiança que se eleva ao Senhor no dia tenebroso do assalto do mal. São os versículos 7 a 14 do Salmo: começam com um grito lançado ao Senhor: «Tem piedade, respondei-me» (versículo 7); depois expressam uma intensa busca do Senhor com o temor doloroso de sentir-se abandonado por ele (cf vv. 8-9); por último, apresentam ante nossos olhos um horizonte dramático no qual os mesmos afetos familiares desfalecem (cf. versículo 10), enquanto aparecem «inimigos», «adversários», «testemunhas falsas» (versículo 12).

Mas também agora, como na primeira parte do Salmo, o elemento decisivo é a confiança de quem ora no Senhor que salva na provação e oferece seu apoio na tempestade. Neste sentido, é belíssimo o chamado que o salmista dirige a si mesmo ao final: «Espera no Senhor, seja valente, tenha ânimo, espera no Senhor» (versículo 14; Cf. Salmo 41, 6.12 e 42, 5). Também em outros Salmos estava viva a certeza de que do Senhor se obtém fortaleza e esperança: «o Senhor protege os fieis... Que vosso coração se afirme, vós que esperais no Senhor! (Salmo 30, 24-25). O profeta Oséias exortava a Israel: «espera em teu Deus sempre» (Oséias 12, 7).

2. Limitamo-nos agora a destacar três símbolos de grande intensidade espiritual. O primeiro, de caráter negativo, é o do pesadelo dos inimigos (Cf. Salmo 26, 12). São descritos como uma besta que cerca sua presa e, depois, de maneira mais direta, como «testemunhas falsas» que parecem inspirar violência pelo nariz, como as feras ante suas vítimas. Portanto, no mundo há um mal agressivo, que tem por guia ou inspirador Satanás, como recorda São Pedro: «vosso adversário, o Diabo, ronda como leão rugindo, buscando a quem devorar» (1 Pedro 5, 8).

3. A segunda imagem ilustra claramente a confiança serena do fiel, apesar do abandono inclusive por parte dos pais: «Se meu pai e minha mãe me abandonam, o Senhor me recolherá» (Salmo 26, 10). Também na solidão e na perda dos afetos mais queridos, quem ora nunca está totalmente só porque sobre ele se inclina Deus misericordioso. O pensamento se dirige a uma célebre passagem do profeta Isaías, que atribui a Deus sentimentos de compaixão e de ternura mais que materna: «Acaso esquece uma mulher o filho que gerou, sem compadecer-se do filho de suas entranhas? Pois ainda que essa esquecesse, eu não lhe esqueceria» (Isaías 49, 15).

A todas as pessoas anciãs, enfermas, esquecidas de todos, as que ninguém fará nunca um carinho, recordemos estas palavras do salmista e do profeta para que sintam como a mão paterna e materna do Senhor toca silenciosamente e com amor seus rostos sofredores e talvez regados pelas lágrimas.

4. Chegamos assim ao terceiro e último símbolo, repetido em várias ocasiões pelo Salmo: «Buscai meu rosto. Teu rosto buscarei, Senhor, não me escondas teu rosto» (versículos 8-9) . O rosto de Deus é, portanto, a meta da busca espiritual de quem ora. Ao final, emerge uma certeza indissolúvel, a de poder «contemplar a bondade do Senhor» (versículo 13).

Na linguagem dos salmos, «buscar o rosto do Senhor» é com freqüência sinônimo da entrada no templo para celebrar e experimentar a comunhão com o Deus de Sião. Mas a expressão compreende também a exigência mística da intimidade divina através da oração. Na liturgia, portanto, e na oração pessoal, é-nos concedida a graça de intuir esse rosto que nunca poderemos ver diretamente durante nossa existência terrena (cf. Êxodo, 33, 20). Mas Cristo nos revelou, de maneira acessível, o rosto divino e prometeu que no encontro definitivo da eternidade --como nos recorda São João-- «o veremos tal qual é» (1 Jo 3,2). E São Paulo acrescenta: «Então o veremos face a face» (1 Cor 13, 12).

5. Ao comentar este Salmo, o grande escritor cristão do século III, Orígenes, escreve: «Se um homem busca o rosto do Senhor, verá a glória do Senhor de maneira desvelada e, ao fazer-se igual aos anjos, verá sempre o rosto do Pai que está nos céus» (PG 12, 1281).

E Santo Agostinho, em seu comentário aos Salmos, continua deste modo a oração do salmista: «não busquei em ti algum prêmio que esteja fora de ti, mas teu rosto. “Teu rosto buscarei, Senhor”. Com perseverança insistirei nesta busca; não buscarei outra coisa insignificante, mas teu rosto, Senhor, para amar-te gratuitamente, já que não encontro nada mais valioso… “não te afastes irado de teu servo” para que, buscando-te, não me encontre com outra coisa. Que pena pode ser mais dura do que esta para quem ama e busca a verdade de teu rosto? (Comentários dos Salmos 26, 1, 8-9, Roma 1967, pp. 355.357).

Quarta-feira, 28 de abril de 2004

Cl 1,12-20

Cristo, Senhor do cosmos e da história

1. Escutamos o admirável hino cristológico da Carta aos Colossenses. A Liturgia das Vésperas o apresenta aos fiéis nas quatro semanas na qual se articula como um cântico, caráter que talvez tinha desde suas origens. De fato, muitos estudiosos consideram que o hino poderá ser a citação de um canto das Igrejas da Ásia menor, incluído por Paulo na carta dirigida a comunidades cristãs de Colosas, que então era uma cidade florescente e populosa.

O apóstolo, contudo, nunca viajou a este centro da Frígia, região da atual Turquia. A Igreja local havia sido fundada por um discípulo seu, originário daquelas terras, Epafras. Este aparece ao final da carta junto ao evangelista Lucas, «o médico querido», como o chama São Paulo (4,14), e junto a outro personagem, Marcos, «primo de Barnabé» (4,10), em referência talvez ao companheiro de Paulo (Cf. Atos 12, 25; 13, 5.13), que depois se converteria em evangelista.

2. Dado que teremos a oportunidade de voltar em várias ocasiões a comentar este cântico, contentamo-nos agora com oferecer um olhar de conjunto e evocar um comentário espiritual, escrito por um famoso Padre da Igreja, São João Crisóstomo (IV sec. D.C.), famoso orador e bispo de Constantinopla. No hino emerge a grandiosa figura de Cristo, Senhor do Cosmos. Igualmente, a divina Sabedoria criadora exaltada pelo Antigo Testamento (cf. por exemplo, Provérbios 8, 22-31), «ele existe com anterioridade a tudo, e tudo tem nele sua consistência»; «tudo foi criado por ele e para ele» (Colossenses 1, 16-17).

Portanto, no universo se desprega um desígnio transcendente de que Deus atua através da obra de seu Filho. Proclama-o também o «Prólogo» do Evangelho de João, quando afirma que «tudo se fez pela Palavra e sem ela não se fez nada de quanto existe» (João 1,3). Também a matéria, com sua energia, vida e luz, leva a marca do Verbo de Deus, «seu Filho amado». A revelação do Novo Testamento oferece uma nova luz sobre as palavras do sábio do Antigo Testamento, que declarava que «da grandeza e formosura das criaturas se chega, por analogia, a contemplar a seu Autor» (Sabedoria 13, 5).

3. O Cântico da Carta aos Colossenses apresenta outra função de Cristo: ele é também o Senhor da história da salvação, que se manifesta na Igreja (Cf. Colossenses 1, 18) e se realiza no «sangue de sua cruz» (versículo 20), manancial de paz e de harmonia para toda história humana. Portanto, não só o horizonte exterior a nossa existência está marcado pela presença eficaz de Cristo, mas também a realidade mais específica da criatura humana, ou seja, a história. Esta não está à mercê de forças cegas e irracionais, mas que, apesar do pecado e do mal, rege-se e está orientada --por obra de Cristo-- para a plenitude. Por meio da Cruz de Cristo, toda a realidade está «reconciliada» com o Pai (Cf. versículo 20). O hino traça, deste modo, um estupendo quadro do universo e da história, convidando-nos à confiança. Não somos uma partícula de pó inútil, perdida em um espaço e em um tempo sem sentido, mas formamos parte de um projeto surgido do amor do Pai.

4. Como havíamos anunciado, damos agora palavra a São João Crisóstomo para que seja ele quem culmine esta reflexão. Em seu «Comentário à Carta aos Colossenses», detém-se amplamente neste cântico. No início, sublinha o caráter gratuito de Deus, ao «compartilhar a sorte do povo santo na luz» (v. 12). «Por que a chama “sorte”?», pergunta Crisóstomo, e responde: «Para demonstrar que ninguém pode conseguir o Reino com suas próprias obras. Também neste caso, como na maioria das vezes, a “sorte” tem o sentido de “fortuna”. Ninguém pode ter um comportamento capaz de merecer o Reino, mas que tudo é dom do Senhor. Por isso, diz. “Somos servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer”» (Patrologia Grega 62, 312).

Esta gratidão benévola e poderosa volta a emergir mais adiante, quando lemos que por meio de Cristo foram criadas todas as coisas (Cf. Colossenses 1, 16). «Dele depende a substância de todas as coisas --explica o bispo--. Não só as fez passar do não ser ao ser, mas que as segue sustentando de maneira que se ficaram subtraídas a sua providência. Dependem dele. Só o fato de inclinar-se para ele é suficiente para sustentá-las e reforçá-las» (Patrologia Grega 62, 319).

Com maior motivo é sinal de amor gratuito o que Deus realiza pela Igreja, da qual é Cabeça. Neste sentido (Cf. versículo 18), João Crisóstomo explica: «depois de ter falado da dignidade de Cristo, o apóstolo fala também de seu amor pelos homens: “Ele é a cabeça de seu corpo, que é a Igreja”, para mostrar sua íntima comunhão conosco. Quem está tão alto se uniu a quem está abaixo» (patrologia Grega, 62, 320).