Queridos irmãos:
1. De maneira muito incisiva, Jesus afirma no Evangelho que os olhos são um símbolo expressivo do eu profundo, um espelho da alma (cf. Mateus 6, 22-23). Pois bem, o Salmo 122, que se acaba de proclamar, sintetiza-se em uma troca de olhares: o fiel levanta os olhos ao Senhor e espera uma reação divina para perceber um gesto de amor, um olhar de benevolência. Também nós elevamos um pouco os olhos e esperamos um gesto de benevolência do Senhor.
Com freqüência, no Saltério se fala do olhar do Altíssimo, que «observa desde o céu aos filhos de Adão, para ver se há algum sensato que busque a Deus» (Salmo 13, 2). O salmista, como escutamos, recorre a uma imagem, a do servo e da escrava, que olham a seu senhor em espera de uma decisão libertadora.
Ainda que a cena esteja ligada ao mundo antigo a suas estruturas sociais, a idéia é clara e significativa: esta imagem tomada do mundo do antigo Oriente quer exaltar a adesão do pobre, a esperança do oprimido e a disponibilidade do justo ao Senhor.
2. O orador está à espera de que as mãos divinas se movam, pois atuarão segundo a justiça, destruindo o mal. Por este motivo, com freqüência, no Saltério o orador eleva seus olhos cheios de esperança para o Senhor: «Tenho os olhos postos no Senhor, porque Ele tira meus pés da rede» (Salmo 24, 15), enquanto «se me nublam os olhos de tanto aguardar meu Deus» (Salmo 68, 4).
O Salmo 122 é uma súplica na qual a voz de um fiel se une à de toda a comunidade: de fato, o Salmo passa da primeira pessoa do singular --«a ti ergo meus olhos»-- à do plural, «nossos olhos» (Cf. versículos 1-3). Expressa a esperança de que as mãos do Senhor se abram para difundir dons de justiça e de liberdade. O justo espera que o olhar de Deus se revele em toda sua ternura e bondade, como se lê na antiga benção sacerdotal do livro dos Números: «ilumine o Senhor seu rosto sobre ti e te seja propício; o Senhor te mostre seu rosto e te conceda a paz» (Número 6, 25-26).
3. A importância do olhar amoroso de Deus se revela na segunda parte do salmo, caracterizada pela invocação: «Misericórdia, Senhor, misericórdia» (Salmo 122, 3). Continua com o final da primeira parte, na qual se confirma a expectativa confiada, «esperando sua misericórdia», (versículo 2). Os fiéis têm necessidade de uma intervenção de Deus porque se encontram em uma situação penosa, de desprezo e de humilhações por parte de prepotentes. A imagem que o salmista utiliza agora é a da saciedade: «estamos saciados de desprezos; nossa alma está saciada do sarcasmo dos satisfeitos, do desprezo dos orgulhosos» (versículos 3-4).
À tradicional saciedade bíblica de refeições e de anos, considerada como sinal da benção divina, opõe-se agora uma intolerável saciedade constituída por uma carga exorbitante de humilhações. E sabemos que hoje muitas nações, muitos indivíduos estão cheios de humilhações, estão demasiado saciados das humilhações dos satisfeitos, do desprezo dos soberbos. Rezemos por eles e ajudemos estes irmãos nossos humilhados. Por este motivo, os justos confiaram sua causa ao Senhor e ele não é indiferente a esses olhos implorantes, não ignora sua invocação nem a nossa, nem decepciona sua esperança.
4. Ao final, deixemos espaço à voz de Santo Ambrósio, o grande Arcebispo de Milão, que com o espírito do salmista dá ritmo poético à obra de Deus que nos chega através de Jesus Salvador. «Cristo é tudo para nós. Se queres curar uma ferida, ele é médico; se estás ardendo de febre, é fonte; se estás oprimido pela iniqüidade, é justiça; se tens necessidade de ajuda, é força; se tens medo da morte, é vida; se desejas o céu, é caminho; se foges das trevas, é luz; se buscas comida, é alimento» («A virgindade» --«La verginità»--, 99: SAEMO, XIV/2, Milano-Roma 1989, p. 81).
Quarta-feira, 15 de junho de 2005
1. Ante nós temos o Salmo 123, um cântico de ação de graças entoado por toda a comunidade em oração que eleva a Deus o louvor pelo dom da libertação. O salmista proclama ao início este convite: «Que o diga Israel» (versículo 1), estimulando todo o povo a elevar uma ação de graças viva e sincera ao Deus salvador. Se o Senhor não tivesse estado do lado das vítimas, estas, com suas poucas forças, não teriam sido capazes de libertar-se, e seus adversários, como monstros, tê-las-iam esquartejado e triturado.
Ainda que se pensou em algum acontecimento histórico particular, como o fim do exílio da Babilônia, é mais provável que o Salmo queira ser um hino para agradecer intensamente ao Senhor por ter superado os perigos e para implorar-lhe a libertação de todo mal.
2. Depois de ter mencionado ao início alguns «homens» que assaltavam os fiéis e eram capazes de tê-los «tragado vivos» (Cf. versículos 2-3), o canto tem duas passagens. Na primeira parte, dominam as águas turvas, símbolo para a Bíblia do caos devastador, do mal e da morte: «Ter-nos-iam envolvido as águas, chegando-nos a torrente até o pescoço, ter-nos-iam chegado até o pescoço as águas espumantes» (versículos 4-5). O orador experimenta agora a sensação de encontrar-se em uma praia, tendo-se salvo milagrosamente da fúria impetuosa do mar.
A vida do homem está cercada de embocadas dos malvados que não só atentam contra sua existência, mas que querem destruir também todos os valores humanos. Contudo, o Senhor intervém em ajuda do justo e o salva, como canta o Salmo 17: «Ele estende sua mão do alto para segurar-me, para tirar-me das profundas águas; livra-me de um inimigo poderoso, de meus adversários mais fortes que eu… O Senhor foi um apoio para mim; tirou-me a espaço aberto, salvou-me porque me amava» (versículos 17-20).
3. Na segunda parte de nosso canto de ação de graças, passa-se da imagem marinha a uma cena de caça, típica de muitos salmos de súplica (Cf. Salmo 123, 6-8). Evoca uma fera que tem entre suas garras a sua presa ou uma armadilha de caçadores que captura um pássaro. Mas a benção expressada pelo Salmo dá-nos a entender que o destino dos fiéis, que era um destino de morte, mudou radicalmente graças a uma intervenção salvadora: «Bendito o Senhor, que não nos entregou como presa a seus dentes; salvamos a vida, como um pássaro da armadilha do caçador: a armadilha se rompeu, e escapamos» (versículos 6-7).
A oração converte-se neste momento em um suspiro de alívio que surge do profundo da alma: inclusive quando se derrubam todas as esperanças humanas, pode aparecer a potência libertadora divina. O Salmo conclui com uma profissão de fé, que desde há séculos entrou na liturgia cristã como uma premissa ideal de toda oração: «Adiutorium nostrum in nomine Domini, qui fecit caelum et terram – nosso auxílio é o nome do Senhor, que fez o céu e a terra» (versículo 8). O Onipotente põe-se em particular do lado das vítimas e dos perseguidos «que estão clamando a ele dia e noite» e «lhes fará justiça logo» (Cf. Lucas 18, 7-8).
4. Santo Agostinho oferece um comentário articulado a este salmo. Em primeiro lugar, observa que este salmo propriamente é cantado pelos «membros de Cristo, que alcançaram a felicidade». Em particular, «cantaram-no os santos mártires, que, tendo saído deste mundo, estão com Cristo na alegria, dispostos a retomar incorruptos esses mesmos corpos que antes eram corruptíveis. Em sua vida, sofreram tormentos no corpo, mas na eternidade esses tormentos se transformarão em adornos de justiça».
Mas em um segundo momento, o bispo de Hipona diz-nos que também nós podemos cantar este salmo com esperança. Declara: «Também nós estamos animados por uma esperança segura e cantaremos exultando. Não são estranhos para nós os cantores deste Salmo... Portanto, cantemos todos com um só coração: tanto os santos que já possuem a coroa, como nós, que com o afeto nos unimos a sua coroa. Junto desejamos essa vida que aqui em baixo temos, mas que nunca poderemos ter se antes não desejamos».
Santo Agostinho volta então à primeira perspectiva e explica: «Os santos recordam os sofrimentos que enfrentaram e do lugar de felicidade e de tranqüilidade no qual se encontram olham para o caminho percorrido; e, dado que teria sido difícil alcançar a libertação se a mão do Libertador não interviesse para ajudá-los, cheios de alegria, exclamam: “Se o Senhor não tivesse estado do nosso lado”. Assim começa seu canto. Não falam nem sequer daquele do qual se libertaram pela alegria de seu júbilo» (Comentário ao Salmo 123, «Esposizione sul Salmo 123», 3: «Nuova Biblioteca Agostiniana», XXVIII, Roma 1977, p. 65).
Quarta-feira, 22 de junho de 2005
Queridos irmãos e irmãs:
1. Hoje não escutamos um salmo, mas um hino tomado da carta aos Efésios (Cf. 1,3-14), hino que aparece na Liturgia das Vésperas de cada uma das quatro semanas. Este hino é uma oração de benção dirigida a Deus Pai. Seu desenvolvimento busca delinear as diferentes etapas do plano de salvação que se realiza através da obra de Cristo.
No centro da benção ressoa a palavra grega «mysterion», um termo associado geralmente aos verbos que fazem referência à revelação («revelar», «conhecer», «manifestar»). Este é precisamente o grande projeto secreto que o Pai havia custodiado em si mesmo desde a eternidade (Cf. versículo 9) e que decidiu atuar e revelar «quando chegasse o momento culminante» (Cf. versículo 10) em Jesus Cristo, seu Filho.
As etapas deste plano estão salpicadas no hino pelas ações salvíficas de Deus por Cristo no Espírito. Antes de tudo, o Pai --este é primeiro ato-- escolhe-nos desde a eternidade para que sejamos santos e irrepreensíveis no amor (Cf. versículo 4), depois nos predestina a ser seus filhos (Cf versículos 5-6), também nos redime e nos perdoa os pecados (Cf. versículos 7-8), desvela-nos plenamente o mistério da salvação em Cristo (Cf. versículos 9-10), e por último nos dá a herança eterna (cf. versículos 11-12), oferecendo-nos já desde agora como prenda o dom do Espírito Santo de face à ressurreição final (Cf. versículo 13-14).
2. São múltiplos, portanto, os acontecimentos salvíficos que se sucedem no desenvolvimento do hino. Envolvem as três pessoas da Santíssima Trindade: começa-se com o Pai, que é o iniciador e o artífice supremo do plano de salvação; fixa-se o olhar no Filho, que realiza o desígnio na história; até chegar ao Espírito Santo que imprime seu «selo» a toda a obra de salvação. Detenhamo-nos brevemente agora nas primeiras duas etapas, a da santidade e a da filiação (Cf. versículos 4-6).
O primeiro gesto divino, revelado e atuado em Cristo, é a eleição dos fiéis, fruto de uma iniciativa livre e gratuita de Deus. No princípio, portanto, «antes de criar o mundo» (versículo 4), na eternidade de Deus, a graça divina está disposta a entrar em ação. Comovo-me meditando esta verdade: desde a eternidade estamos ante os olhos de Deus e Ele decidiu salvar-nos. Este chamado tem como conteúdo nossa «santidade», uma grande palavra. Santidade é participação na pureza do Ser divino. E sabemos que Deus é caridade. Portanto, participar na pureza divina quer dizer participar na «caridade» de Deus, conforma-nos com Deus que é «caridade». «Deus é amor» (1 Jo 4, 8.16), esta é a verdade consoladora que nos permite também compreender que «santidade» não é uma realidade afastada de nossa vida, mas que, na medida em que podemos converter-nos em pessoas que amam com Deus, entramos no mistério da «santidade». O «ágape» se converte deste modo em nossa realidade cotidiana. Somos levados portanto ao horizonte sacro e vital do próprio Deus.
3. Nesta linha avança-se para a outra etapa, que também é contemplada pelo plano divino desde a eternidade: nossa «predestinação» a filhos de Deus. Não só criaturas humanas, mas realmente pertencentes a Deus como filhos seus.
Paulo exalta em outras passagens (Cf. Gálatas 4, 5; Romanos 15.23) esta sublime condição de filhos que implica e se deriva da fraternidade com Cristo, o filho por excelência, «primogênito entre muitos irmãos» (Romanos 8, 29) e da intimidade com o Pai celestial que já pode ser invocado como «abba», ao que podemos chamá-lo «pai querido», com um sentido de autêntica familiaridade com Deus, com uma relação de espontaneidade e de amor. Estamos, portanto, em presença de um dom imenso, feito possível por «pura iniciativa» divina e da «graça», luminosa expressão do amor que salva.
4. Ao concluir, encomendamo-nos ao grande bispo de Milão, Santo Ambrósio, que em uma das cartas comenta as palavras do apóstolo Paulo aos Efésios, detendo-se precisamente no rico conteúdo de nosso hino cristológico. Sublinha antes de tudo a graça superabundante com que Deus nos fez filhos adotivos seus em Jesus Cristo. «Não há que duvidar que os membros estejam unidos a sua cabeça, em particular porque desde o princípio fomos predestinados à adoção de filhos de Deus, por meio de Jesus Cristo» («Carta XVI a Irineu», «Lettera XVI ad Ireneo», 4: SAEMO, XIX, Milano-Roma 1988, p. 161).
O santo bispo de Milão continua sua reflexão observando: «Quem é rico senão Deus, criador de todas as coisas?». E conclui: «Mas é muito mais rico em misericórdia, pois nos redimiu e transformou, a quem segundo a natureza da carne éramos filhos da ira e sujeitos ao castigo, para que fôssemos filhos da paz e da caridade» (n. 7 ibidem, p. 163).
Quarta-feira, 6 de julho de 2005