Salmo 61(62)

A paz está em Deus

1. Acabam de ressoar as doces palavras do Salmo 61, um canto de confiança, que começa com uma espécie de antífona, repetida na metade do texto. É como uma jaculatória forte e serena, uma invocação que é também um programa de vida: «Só em Deus descansa minha alma, porque dele vem minha salvação, só ele é minha rocha e minha salvação, minha fortaleza: não vacilarei» (versículos 2-3.6-7).

2. O Salmo, contudo, mais adiante põe em contraposição duas formas de confiança. São duas opções fundamentais, uma boa e outra perversa, que comportam duas condutas morais diferentes. Antes de tudo, está a confiança em Deus, exaltada na invocação inicial, onde aparece um símbolo de estabilidade e segurança, a «rocha», ou seja, uma fortaleza e um baluarte de proteção.

O Salmista confirma: «De Deus vem minha salvação e minha glória, ele é minha rocha firme, Deus é meu refúgio» (versículo 8). Diz isso após ter evocado as confabulações de seus inimigos que «só pensam em derrubar-me de minha altura» (Cf. versículos 4-5).

3. Mas está também a confiança de caráter idólatra, ante a qual aquele que ora fixa com insistência sua atenção crítica. É uma confiança que leva a buscar a segurança e a estabilidade na violência, no roubo e na riqueza.

Então se faz um chamado sumamente claro: «Não confieis na opressão, não ponhais ilusões no roubo; e ainda que cresçam vossas riquezas, não lhes deis o coração» (versículo 11). Evoca três ídolos, proscritos como contrários à dignidade do homem e à convivência social.

4. O primeiro falso deus é a violência À qual a humanidade segue recorrendo por desgraça também em nossos dias ensangüentados. Este ídolo é acompanhado por um imenso cortejo de guerras, opressões, prevaricações, torturas e assassinatos execráveis, cometidos sem remorsos. O segundo falso deus é o roubo, que se manifesta na extorsão, na injustiça social, na usura, na corrupção política e econômica. Muita gente cultiva a «ilusão» de satisfazer deste modo sua própria cobiça. Por último, a riqueza é o terceiro ídolo ao que «se apega o coração» do homem com a esperança enganosa de poder-se salvar da morte (Cf. Salmo 48) e assegurar-se o prestígio e o poder.

5. Ao servir a esta tríade diabólica, o homem esquece que os ídolos não têm consistência, e mais, são daninhos. Ao confiar nas coisas e em si mesmo, esquece que é «um sopro», «aparência», e mais, se se pesa na balança, seria «mais leve que um sopro» (Salmo 61, 10; Cf. Salmo 38, 6-7).

Se fôssemos mais conscientes de nossa caducidade e de nossos limites como criaturas, não escolheríamos o caminho da confiança nos ídolos, nem organizaríamos nossa vida segundo uma hierarquia de falsos valores frágeis e inconsistentes. Optaríamos mais pela outra confiança, a que se centra no Senhor, manancial de eternidade e de paz. Só Ele «tem o poder»; só Ele é manancial de graça; só Ele é plenamente justo, pois paga «a cada um segundo suas obras» (Cf. Salmo 61, 12-13).

6. O Concílio Vaticano II dirigiu aos sacerdotes o convite do Salmo 61 a «não apegar o coração à riqueza». O decreto sobre o ministério e a vida sacerdotal exorta: «hão de evitar sempre toda classe de ambição e abster-se cuidadosamente de toda espécie de comércio» (Presbyterorum ordinis, n. 17). Agora, este chamado a rejeitar a confiança perversa e a escolher a que nos leva a Deus é válido para todos e deve converter-se em nossa estrela polar no comportamento cotidiano, nas decisões morais, no estilo de vida.

7. É verdade, é um caminho árduo, que comporta inclusive provas para o justo e opções valentes, mas sempre caracterizadas pela confiança em Deus (Cf. Salmo 61, 2). Deste ponto de vista, os Padres da Igreja viram no Salmo 61 uma premonição de Cristo e puseram em seus lábios a invocação inicial de total confiança e adesão a Deus.

Neste sentido, no «Comentário ao Salmo 61», Santo Ambrósio argumenta: «Nosso Senhor Jesus, ao assumir a carne do homem para purificá-la com sua pessoa, não deveria ter cancelado imediatamente a influência maléfica do antigo pecado? Pela desobediência, ou seja, violando os mandamentos divinos, a culpa se havia introduzido, arrastando-se. Antes de tudo, portanto, teve de restabelecer a obediência para bloquear o foco do pecado... Assumiu com sua pessoa a obediência para transmitir-nos» («Comentário aos doze salmos» --«Commento a dodici Salmi»-- 61, 4: SAEMO, VIII, Milano-Roma 1980, p. 283).

Quarta-feira, 10 de novembro de 2004

Salmo 66(67)

Que todos os povos te louvem

1. «A terra deu seu fruto», exclama o Salmo que acabamos de proclamar, o 66, um dos textos introduzidos na Liturgia das Vésperas. A frase nos faz pensar em um hino de ação de graças dirigido ao Criador pelos dons da terra, sinal da benção divina. Mas este elemento natural está intimamente ligado ao histórico: os frutos da natureza são considerados uma ocasião para pedir repetidamente que Deus abençoe seu povo (Cf. versículos 2.7.8.), de modo que todas as nações da terra se voltem a Israel, tentando chegar através dele ao Deus salvador.

A composição oferece, portanto, uma perspectiva universal e missionária, seguindo as marcas da promessa divina feita a Abraão «Por ti se abençoarão todas linhagens da terra» (Gênesis 12, 3; Cf. 18, 18; 28, 14).

2. A benção divina pedida por Israel se manifesta concretamente na fertilidade dos campos e na fecundidade, ou seja, no dom da vida. Por isso, o Salmo abre-se com um versículo (Cf. Salmo 66, 2) que faz referência à famosa benção sacerdotal do Livro dos Números. «O Senhor te abençoe e te guarde; ilumine o Senhor seu rosto sobre ti e te seja propício; o Senhor te mostre seu rosto e te conceda a paz» (Números 6, 24-26).

O eco do tema da benção ressoa ao final do Salmo, onde reaparecem os frutos da terra (CF. Salmo 6, 7-8). Aí aparece este tema universal que confere à espiritualidade de todo o hino uma surpreendente amplitude de horizontes. É uma abertura que reflete a sensibilidade de um Israel que já está disposto a confrontar-se com todos os povos da terra. A composição do Salmo deve marcar-se, talvez, após a experiência do exílio da Babilônia, quando o povo começou a experimentar a Diáspora entre as nações estrangeiras e em novas regiões.

3. Graças à benção implorada por Israel, toda a humanidade poderá experimentar «a vida» e «a salvação» do Senhor (Cf. versículo 3), ou seja, seu projeto salvífico. A todas as culturas e a todas as sociedades se lhes revela que Deus julga e governa os povos e as nações de todas as partes da terra, guiando cada um para horizontes de justiça e paz (Cf. v5).

É o grande ideal para o qual estamos orientados, é o anúncio mais importante que surge do Salmo 66 e de muitas páginas proféticas (Cf. Isaías 2,1-5; 60, 1-22; Jonas 4,1-11, Sofonias 3,9-10, Malaquias, 1,11).

Esta será também a proclamação cristã que São Paulo delineará ao recordar que a salvação de todos os povos é o centro do «mistério», ou seja, do desígnio salvífico divino: «os gentis sois co-herdeiros, membros do mesmo Corpo e partícipes da mesma Promessa em Cristo Jesus por meio do Evangelho». (Efésios 3, 6).

4. Agora Israel pode pedir a Deus que todas as nações participem em seu louvor; será um coro universal: «Oh Deus, que te louvem os povos, que todos os povos te louvem», repete-se no Salmo (Cf. Salmo 66, 4.6).

O auspício do Salmo precede o acontecimento descrito pela Carta aos Efésios, quando parece fazer alusão ao muro que no templo de Jerusalém separava os judeus dos pagãos: «Em Cristo Jesus, vós, os que em outro tempo estáveis distante, haveis chegado a estar perto pelo sangue de Cristo. Porque ele é nossa paz: o que dos dois povos fez um, derrubando o muro que os separava, a inimizade... Assim, pois, já não sois nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e familiares de Deus» (Efésios 2, 13-14. 19).

Há aqui uma mensagem para nós: temos de abater os muros das divisões, da hostilidade e do ódio para que a família dos filhos de Deus se volte a encontrar em harmonia na única mesa, para bendizer e louvar ao Criador pelos dons que ele envia a todos, sem distinção (Cf. Mateus 5, 43-48).

5. A tradição cristã interpretou o Salmo 66 em chave cristológica e mariológica. Para os Padres da Igreja, «a terra que deu seu fruto» é a virgem Maria que dá à luz Jesus Cristo. Deste modo, por exemplo, São Gregório Magno, no «Comentário ao primeiro Livro dos Reis», glosa este versículo, comparando-o a outras muitas passagens da Escritura: «Maria é chamada, e com razão, “monte rico de frutos”, pois dela nasceu um ótimo fruto, ou seja, um homem novo. E ao ver sua beleza, adornada na glória de sua fecundidade, o profeta exclama: “Sairá um broto do tronco de Jessé, um rebento de suas raízes brotará” (Isaías 11, 1). Davi, ao exultar pelo fruto deste monte, diz a Deus: “Oh Deus, que te louvem os povos, que todos os povos te louvem. A terra deu seu fruto”. Sim, a terra deu seu fruto, porque aquele a quem a Virgem gerou não foi concebido por obra de homem, mas porque o Espírito Santo estendeu sobre ela sua sombra. Por este motivo, o Senhor diz ao rei e profeta Davi: “O fruto de teu seio colocarei em teu trono” (Salmo 131, 11). Deste modo, Isaías afirma: «o germe do Senhor será magnífico” (Isaías 4,2). De fato, aquele a quem a virgem gerou não só foi um “homem santo”, mas também “Deus poderoso” (Isaías 9, 5)» («Textos marianos do primeiro milênio» --«Testi Mariani Del primo millennio»-- III, Roma 1990, p. 625.

Quarta-feira, 17 de novembro de 2004

Cl 1,3.12-20

Hino a Cristo

1. Acaba de ressoar o grande hino cristológico com o qual começa a carta dos Colossenses. Nele sobressai a figura gloriosa de Cristo, coração da liturgia e centro de toda vida eclesial. Rapidamente o horizonte do hino se amplia a toda a criação e à redenção, abarcando todo ser criado e toda a história.

Neste canto pode-se perceber o ambiente de fé e de oração da antiga comunidade cristã, e o apóstolo recolhe sua voz e testemunho, imprimindo ao mesmo tempo ao hino sua marca.

2. Depois de uma introdução na qual se dá graças ao Pai pela redenção (Cf. versículos 12-14), o cântico, que a Liturgia das Vésperas apresenta a cada semana, articula-se em duas estrofes. A primeira celebra Cristo como «primogênito de toda criatura», ou seja, foi gerado antes de todo ser, afirmando assim sua eternidade que transcende o espaço e o tempo (Cf. versículos 15-18). Ele é a «imagem», o «ícone» de Deus que permanece invisível em seu mistério. Esta foi a experiência de Moisés, que, em seu ardente desejo de contemplar a realidade pessoal de Deus, escutou esta resposta: «Meu rosto não poderás vê-lo, porque não pode ver-me o homem e seguir vivendo» (Êxodo 33, 20, Cf. João 14, 8-9).

Pelo contrário, o rosto do Pai criador do universo se faz acessível em Cristo, artífice da realidade criada. «por meio dele foram criadas todas as coisas... e tudo se mantém nele» (Colossenses 1, 16-17). Cristo, portanto, por um lado, é superior às realidades criadas, mas, por outro, está envolvido em sua criação. Por este motivo, pode ser visto como «imagem do Deus invisível», perto de nós através do ato criativo.

3. O louvor em honra de Cristo avança na segunda estrofe (Cf. versículos 18b-20) para outro horizonte: o da salvação, da redenção, regeneração da humanidade criada por ele, mas que, ao pecar, havia caído na morte.

Agora a «plenitude» de graça e de Espírito Santo que o Pai deu ao Filho permite que, ao morrer e ressuscitar, possa comunicar-nos uma nova vida (Cf. versículos 19-20).

4. Ele é celebrado, portanto, como «o primogênito dentre os mortos» (1, 18b). Com sua «plenitude» divina, mas também com seu sangue derramado na cruz, Cristo «reconcilia» e «faz a paz» entre todas as realidades, celestes e terrestres. Deste modo lhes restitui sua situação originária, recriando a harmonia primogênica, querida por Deus segundo seu projeto de amor e vida. Criação e redenção estão, portanto, ligadas entre si como etapas de uma mesma história de salvação.

5. Como de costume, deixamos agora espaço para a meditação dos grandes mestres da fé, os Padres da Igreja. Um deles nos guiará na reflexão sobre a obra redentora realizada por Cristo com seu sangue.

Ao comentar nosso hino, São João Damasceno, no «Comentário às cartas de São Paulo», escreve: «São Paulo fala do “sangue pelo qual recebemos a redenção” (Efésios 1,7). É-nos dado como resgate o sangue do Senhor, que leva os prisioneiros da morte à vida. Os que estavam submetidos ao reino da morte só podiam libertar-se através daquele que se fez partícipe conosco da morte... Com sua vinda, conhecemos a natureza de Deus que existia antes de sua vinda. De fato, é obra de Deus o ter extinguido a morte, restituído a vida e reconduzido a Deus o mundo. Por isso, diz: “Ele é imagem do Deus invisível” (Colossenses 1, 5), para manifestar que é Deus, ainda que não é o Pai, mas a imagem do Pai, e tem sua própria identidade, mas não é Ele» («Os livros da Bíblia interpretados pela grande tradição» --«I libri della Bíblia interpretati dalla grande tradizione»--, Bolonha 2000, pp. 18.23).

Depois, João Damasceno conclui deixando um olhar de conjunto à obra salvadora de Cristo: «A morte de Cristo salvou e renovou o homem, e deu aos anjos a alegria primitiva, por causa dos salvadores, e uniu as realidades inferiores com as superiores... Fez a paz e tirou do meio a inimizade. Por isso, diziam os anjos: “Glória a Deus no céu e paz na terra”», (ibidem, p. 37).

Quarta-feira, 24 de novembro de 2004