Salmo 109(110),1-5.7

O Messias, rei e sacerdote

1. Escutamos um dos Salmos mais célebres da história da cristandade. O Salmo 109, que a Liturgia das Vésperas nos propõe todos os domingos é citado, de fato, várias vezes pelo Novo Testamento. Sobretudo os versículos 1 e 4 são aplicados a Cristo, no seguimento da antiga tradição judaica, que tinha transformado este hino de cântico real davídico em Salmo messiânico.

Deve-se a popularidade desta oração também ao uso constante que dela fazem as Vésperas do domingo. Por este motivo o Salmo 109, na versão latina da Vulgata, foi objeto de numerosas e maravilhosas composições musicais que assinalaram a história da cultura ocidental. A Liturgia, segundo a praxe escolhida pelo Concílio Vaticano II, retirou do texto original hebraico do Salmo, que entre outras coisas é formado apenas por 63 palavras, o violento versículo 6. Ele evoca a tonalidade dos chamados "Salmos imprecatórios" e descreve o rei hebraico no momento em que avança para uma espécie de campanha militar, esmagando os seus adversários e julgando as nações.

2. Visto que teremos ocasião de voltar a falar acerca deste Salmo, considerando o uso que dele faz a Liturgia, limitemo-nos agora a oferecer apenas uma visão de conjunto do mesmo. Nele podemos distinguir claramente duas partes. A primeira (cf. vv. 1-3) contém um oráculo dirigido por Deus àquele que o Salmista chama "o meu senhor", ou seja, ao soberano de Jerusalém. O oráculo proclama a entronização do descendente de Davi "à direita" de Deus. Com efeito, o Senhor dirige-se a ele dizendo: "Senta-te à minha direita" (v. 1). Provavelmente, temos aqui a menção de um ritual, segundo o qual o eleito se sentava à direita da arca da aliança, de modo que pudesse receber o poder de governo do rei supremo de Israel, isto é, do Senhor.

3. No fundo intuem-se forças hostis, que contudo são neutralizadas por uma conquista vitoriosa: os inimigos são representados aos pés do soberano, que avança solene no meio deles segurando o cetro da sua autoridade (cf. vv. 1-2). É sem dúvida o reflexo de uma situação política concreta, que se verificava nos momentos de passagem do poder de um rei para outro, com a rebelião de alguns subalternos ou com tentativas de conquista. Mas agora o texto remete para um contraste de índole geral entre o projeto de Deus, que age através do seu eleito, e os desígnios daqueles que gostariam de afirmar o seu poder hostil e prevaricador. Tem-se, por conseguinte, o eterno confronto entre o bem e o mal, que se verifica no âmbito de vicissitudes históricas, mediante as quais Deus se manifesta e nos fala.

4. A segunda parte do Salmo contém, ao contrário, um oráculo sacerdotal, que tem ainda como protagonista o rei davídico (cf. vv. 4-7). Garantida por um solene juramento divino, a dignidade real une em si também a sacerdotal. A referência a Melquisedec, rei-sacerdote de Salém, ou seja, da antiga Jerusalém (cf. Gn 14), talvez seja o meio para justificar o sacerdócio particular do rei ao lado do sacerdócio oficial levítico do templo de Sião. Depois, sabemos também que a Carta aos Hebreus partirá precisamente deste oráculo: "Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec" (Sl 109, 4), para ilustrar o sacerdócio único e perfeito de Jesus Cristo. Examinaremos sucessivamente de maneira mais profunda o Salmo 109, fazendo uma análise atenta de cada um dos versículos.

5. Mas para concluir, gostaríamos de ler o versículo inicial do Salmo com o oráculo divino: "Senta-te à minha direita, enquanto ponho os teus inimigos por escabelo dos teus pés". E fá-lo-emos com São Máximo de Turim (quarto-quinto século), que, no seu Sermão sobre o Pentecostes, o comenta do seguinte modo: "Segundo os nossos costumes a compartilha do trono é oferecida àquele que, tendo realizado qualquer empreendimento, ao chegar vencedor merece sentar-se em sinal de honra. Por conseguinte, também o homem Jesus Cristo, ao vencer com a sua paixão o diabo, abrindo com a sua ressurreição os reinos do abismo e chegando vitorioso ao céu, como que depois de ter cumprido uma tarefa, ouve de Deus Pai este convite: "Senta-te à minha direita". Não nos devemos admirar se o Pai oferece ao Filho, que é consubstancial ao Pai, a partilha do trono... O Filho senta à direita porque, segundo o Evangelho, à direita estarão as ovelhas e à esquerda os cordeiros. Por conseguinte, é necessário que o primeiro Cordeiro ocupe a parte das ovelhas e o Chefe imaculado ocupe antecipadamente o lugar destinado ao rebanho imaculado que o seguirá" (40, 2: Scriptores circa Ambrosium, IV, Milão-Roma 1991, pág. 195).vv

Quarta-feira, 26 de Novembro de 2003

Salmo 113 A(114)

Maravilhas do êxodo do Egito

1. O jubiloso e triunfal cântico que acabamos de proclamar, recorda o êxodo de Israel da opressão dos egípcios. O Salmo 113 faz parte daquela coletânea que a tradição judaica chamou "Hallel egípcio". São os Salmos 112-117, uma espécie de fascículo de cânticos, usados sobretudo na liturgia judaica da Páscoa.

O cristianismo adotou o Salmo 113 com a mesma conotação pascal, mas abriu-o à nova leitura derivante da ressurreição de Cristo. Por isso, o êxodo celebrado pelo Salmo torna-se figura de outra libertação mais radical e universal. Dante, na Divina Comédia, coloca este hino, segundo a versão latina da Vulgata, nos lábios das almas do Purgatório: "In exitu Israël de Aegypto / cantavam todos juntos em uníssono..." (Purgatorio II, 46-47). O que significa que ele vê no Salmo o cântico da expectativa e da esperança de quantos estão orientados, depois da purificação de todos os pecados, para a meta derradeira da comunhão com Deus no Paraíso.

2. Sigamos agora o enredo temático e espiritual desta breve composição orante. Na abertura (cf. vv. 1-2) evoca-se o êxodo de Israel da opressão egípcia até à entrada naquela terra prometida que é o "santuário" de Deus, ou seja, o lugar da sua presença entre o povo. Aliás, terra e povo são unidos: Judá e Israel, palavras com as quais se designava quer a terra santa quer o povo eleito, são considerados como sede da presença do Senhor, sua propriedade e herança especiais (cf. Ex 19, 5-6). Depois desta descrição teológica de um dos elementos de fé fundamentais do Antigo Testamento, ou seja, a proclamação das obras maravilhosas de Deus para o seu povo, o Salmista aprofunda espiritual e simbolicamente os seus acontecimentos constitutivos.

3. O Mar Vermelho do êxodo do Egito e o Jordão da entrada na Terra santa são personificados e transformados em testemunhas e instrumentos partícipes da libertação realizada pelo Senhor (cf. Sl 113, 3.5). No início, no êxodo, eis que o mar se retira para deixar passar Israel e, no final da marcha no deserto, eis que as águas do Jordão ficaram completamente separadas, deixando o seu leito seco para que a procissão dos filhos de Israel o pudesse atravessar (cf. Js 3.-4). No centro, recorda-se a experiência do Sinai: agora são os montes que participam da grande revelação divina, que se realiza sobre as suas colinas. Semelhantes a criaturas vivas, como os carneiros e os cordeiros, eles estremecem e saltam. Com uma personificação muito vivaz, o Salmista interroga então os montes e as colinas acerca do motivo da sua perturbação: "Montes, porque saltais como carneiros, e vós, colinas, como cordeiros?" (Sl 113, 6). Não é referida a sua resposta: é dada diretamente por meio de uma ordem, dirigida depois à terra, para que tremesse com a chegada do Senhor, Deus de Israel, um ato de exaltação gloriosa do Deus transcendente e salvador.

4. É este o tema da parte final do Salmo 113 (cf. v. 7-8), que introduz outro acontecimento significativo da marcha de Israel no deserto, o da água que saía da rocha de Meriba (cf. Ex 17, 1-7; Nm 20, 1-13). Deus transforma a rocha numa nascente de água, que se torna um lago: na base deste prodígio está a sua solicitude paterna em relação ao povo. O gesto adquire, então, um significado simbólico: é o sinal do amor salvífico do Senhor que ampara e regenera a humanidade enquanto progride no deserto da história.

Como se sabe, São Paulo retomará esta imagem e, com base numa tradição judaica segundo a qual a rocha acompanhava Israel no seu percurso no deserto, lê de novo o acontecimento em chave cristológica: "Todos beberam da mesma bebida espiritual; pois bebiam de um rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo" (1 Cor 10, 4). Neste contexto, um grande mestre cristão como Orígenes, ao comentar a saída do povo de Israel do Egito, pensa no novo êxodo realizado pelos cristãos. De fato, ele exprime-se do seguinte modo: "Não penses que só então Moisés tenha guiado o povo para fora do Egito: também agora o Moisés que temos conosco..., isto é, a lei de Deus quer guiar-te fora do Egito; se a ouvires, quer afastar-te do Faraó... Não quer que tu permaneças nas ações tenebrosas da carne, mas que vás ao deserto, que alcances o lugar privado das perturbações e das flutuações do século, que chegues à tranqüilidade e ao silêncio... Por conseguinte, quando chegares a este lugar, lá poderás imolar ao Senhor, reconhecer a lei de Deus e o poder da voz divina" (Homilias sobre o Êxodo, Roma 1981, pp. 71-72).

Retomando a imagem paulina que recorda a travessia do mar, Orígenes continua: "O Apóstolo chama a isto um batismo, realizado em Moisés na nuvem e no mar, para que tu, que foste batizado em Cristo, na água e no Espírito Santo, saibas que os egípcios estão no teu seguimento e querem chamar-te ao seu serviço, ou seja, aos regedores deste mundo e aos espíritos malvados dos quais antes foste escravo. Sem dúvida, eles procurarão seguir-te, mas tu desces à água e salvas-te incólume e, tendo lavado as manchas dos pecados, sobes como um homem novo preparado para cantar o cântico novo" (Ibid., pág. 107).

Quarta-feira, 3 de dezembro de 2003

Ap 19,1-2.5-7

As núpcias do Cordeiro

1. Segundo a série dos Salmos e dos Cânticos que constituem a oração eclesial das Vésperas, encontramo-nos diante de um trecho de hino, tirado do capítulo 19 do Apocalipse e composto por uma seqüência de aleluias e de aclamações. Por detrás destas aclamações jubilosas está a lamentação dramática entoada no capítulo precedente pelos reis, pelos mercadores e navegadores face à queda da Babilônia imperial, a cidade da maldade e da opressão, símbolo da perseguição que se desencadeou em relação à Igreja.

2. Em antítese a este brado que se eleva da terra, ressoa nos céus um coro jubiloso de tipo litúrgico que, além do aleluia, repete também o amém. As várias aclamações semelhantes a antífonas, que agora a Liturgia das Vésperas une num único cântico, na realidade, no texto do Apocalipse, são colocadas nos lábios de várias personagens. Encontramos antes de mais uma "multidão imensa", constituída pela assembléia dos anjos e dos santos (cf. vv. 1-3). Distingue-se depois a voz dos "vinte e quatro idosos" e dos "quatro seres vivos", figuras simbólicas que se parecem com os sacerdotes desta liturgia celeste de louvor e de agradecimento (cf. v. 4). Por fim, eleva-se uma voz solista (cf. v. 5) que, por sua vez, envolve no cântico uma "grande multidão" com a qual se tinha começado (cf. vv. 6-7).

3. Teremos a ocasião, nas etapas futuras deste nosso itinerário orante, de ilustrar cada uma das antífonas deste grandioso e alegre hino de louvor a várias vozes. Contentamo-nos agora com duas anotações. A primeira refere-se à aclamação de abertura que diz assim: "A salvação, a glória e o poder pertencem ao nosso Deus, porque os seus julgamentos são verdadeiros e justos" (vv. 1-2). No centro desta invocação jubilosa encontra-se a representação da intervenção decisiva de Deus na história: o Senhor não é indiferente, como um imperador impassível e isolado, em relação às vicissitudes humanas. Como diz o Salmista, "o Senhor do Seu trono celestial, observa com os seus olhos, e com a sua vista examina os filhos dos homens" (Sl 10, 4).

4. Aliás, o seu olhar é fonte de ação, porque ele intervém e destrói os impérios prepotentes e opressivos, derrota os orgulhosos que o desafiam, julga todos os que perpetram o mal. É ainda o Salmista quem descreve as imagens pictóricas (cf. Sl 10, 7), esta irrupção de Deus na história, assim como o autor do Apocalipse tinha evocado no capítulo anterior (cf. Ap 18, 1-24) a terrível intervenção divina em relação à Babilônia, desenraizada da sua sede e lançada ao mar. O nosso hino menciona esta intervenção com um trecho que não é retomado na celebração das Vésperas (cf. Ap 19, 2-3). Então, a nossa oração deve sobretudo invocar e louvar a ação divina, a justiça eficaz do Senhor, a sua glória obtida com a vitória sobre o mal. Deus faz-se presente na história, pondo-se do lado dos justos e das vítimas, precisamente como declara a aclamação, breve mas essencial, do Apocalipse e como se repete com freqüência no cântico dos Salmos (cf. Sl 145, 6-9).

5. Desejamos realçar outro tema do nosso Cântico. É desenvolvido da aclamação final e é um dos motivos dominantes do próprio Apocalipse: "Chegaram as núpcias do Cordeiro, a Sua esposa já está preparada" (Ap 19, 7). Cristo e a Igreja, o Cordeiro e a esposa, estão em profunda comunhão de amor. Procuraremos fazer brilhar este caráter esponsal místico através do testemunho poético de um grande Padre da Igreja síria, Santo Efrém, que viveu no quarto século. Usando simbolicamente o sinal das núpcias de Caná (cf. Jo 2, 1-11), ele introduz a própria cidadania, personificada, que louva Cristo pelo grande dom recebido: "Darei graças juntamente com os meus hóspedes porque ele me considerou digna de o convidar: / Ele, que é o Esposo celeste, que desceu e a todos convidou; / e também eu fui convidada para participar na sua festa pura de núpcias. / Reconhecê-lo-ei diante dos povos como o Esposo, como Ele não há outro. / O seu quarto nupcial está preparado desde há séculos, / e o seu quarto nupcial está adornado com riquezas e nada lhe falta: / não como as Bodas de Caná, cujas faltas Ele satisfez" (Inni sulla verginità, 33, 3: L'arpa dello Spirito, Roma 1999, págs. 73-74).

6. Noutro hino que canta também as núpcias de Caná, Santo Efrém realça como Cristo, convidado para as núpcias de outrem (precisamente os esposos de Caná), tenha desejado celebrar a festa das suas núpcias: as núpcias com a sua esposa, que é qualquer alma fiel. "Jesus, tu foste enviado a uma festa de núpcias de outrem, dos esposos de Caná, / aqui, ao contrário, é a tua festa, pura e bela: alegra os nossos dias, / porque também os teus hóspedes, Senhor, precisam / dos teus cânticos: deixa que a tua harpa preencha tudo! / A alma é a tua esposa, o corpo é o teu quarto nupcial, / os teus convidados são os sentidos e os pensamentos. / E se um só corpo é para ti uma festa de núpcias / toda a Igreja constitui o teu banquete nupcial!" (Inni sulla fede, 14, 4-5: op. cit., pág. 27).
Quarta-feira, 10 de Dezembro de 2003