Salmo 114(116 A)

Ação de Graças

1. No Salmo 114, que se acaba de proclamar, a voz do salmista expressa seu amor agradecido ao Senhor, depois de que ele escutasse uma intensa súplica: «Amo o Senhor, porque escuta minha voz suplicante, porque inclina seu ouvido para mim no dia que o invoco» (versículos 1-2). Após esta declaração, oferece-se uma descrição do pesadelo mortal que torturou a vida do orador (Cf. versículos 3-6).

 

Representa-se o drama com os símbolos habituais dos salmos. As redes que enredam a existência são as da morte, os laços que angustiam são a espiral do inferno, que quer atrair a seu interior os vivos sem nunca se saciar (Cf. Provérbios 30, 15-16).

2. É a imagem de uma presa na mira de um inexorável caçador. A morte é como uma mordida que aperta (Cf. Salmo 114, 3). O orador deixou a suas costas o risco da morte, acompanhado por uma experiência psíquica dolorosa: «caí em tristeza e angústia» (versículo 3). Mas desde esse abismo trágico lança um grito para o único que pode estender a mão e tirá-lo deste meio impossível de desfazer: «Senhor, salva minha vida» (versículo 4).

É uma oração breve, mas intensa, do homem que, encontrando-se em uma situação desesperada, agarra-se à única tábua de salvação. Do mesmo modo, gritaram no Evangelho os discípulos na tormenta (Cf. Mateus 8, 35), do mesmo modo implorou Pedro quando, ao caminhar sobre as águas, começava a afundar (Cf. Mateus 14, 30).

 

3. Uma vez salvo, o orador proclama que o Senhor é «benigno e justo», e mais, «misericordioso» (Salmo 114, 5). Este último adjetivo, no original hebreu, faz referência à ternura da mãe, evocando suas «vísceras».

A confiança autêntica sempre experimenta Deus como amor, apesar de em certas ocasiões ser difícil intuir o percurso de sua ação. Fica claro que «o Senhor guarda os simples» (versículo 6). Portanto, na miséria e no abandono, pode-se contar com ele, «pai dos órfãos e tutor das viúvas» (Salmo 67,6).

4. Começa depois um diálogo entre o salmista e sua alma, que continuará no sucessivo Salmo 115, que deve ser considerado parte integrante do que estamos meditando. É o que fez a tradição judaica, dando origem ao único Salmo 116, segundo a numeração hebréia do Saltério. O salmista convida sua alma a recuperar a paz serena após o pesadelo mortal (Cf. Salmo 114, 7).

Invocado com fé, o Senhor estendeu a mão, quebrou as redes que rodeavam o orador, tirou as lágrimas de seus olhos, deteve sua queda precipitada no abismo infernal (Cf. versículo 8). A mudança é clara e o canto conclui com uma cena de luz: o orador regressa «ao país da vida», ou seja, às sendas do mundo, para caminhar «na presença do Senhor». Une-se à oração comunitária do templo, antecipação dessa comunhão com Deus que o esperará ao final de sua existência (Cf. versículo 9).

5. Ao concluir, retomemos as passagens mais importantes do Salmo, deixando-nos guiar por um grande escritor do século III, Orígenes, cujo comentário ao Salmo 114 nos chegou na versão latina de São Jerônimo.

Ao ler que o Senhor «inclina seu ouvido para mim», afirma: «damo-nos conta de que somos pequenos, não podemos levantar-nos, por isso o Senhor inclina seu ouvido e se digna a escutar-nos. Ao fim e ao cabo, dado que somos homens e que não podemos converter-nos em deuses, Deus se fez homem e se inclinou, segundo está escrito: “Ele inclinou os céus e baixou” (Salmo 17, 10)».

De fato, segue dizendo pouco depois o Salmo, «o Senhor guarda os simples» (Salmo 114, 6): «Quem se exalta e é soberbo o Senhor não protege; dos que se crêem grandes o Senhor não tem misericórdia; mas dos que se rebaixam o Senhor tem misericórdia e protege». Até o ponto de que chega a dizer: “aqui estamos eu e os filhos que me deu” (Isaías 8, 18). E também: “Humilhei-me e Ele me salvou”.

Deste modo, quem é pequeno e miserável pode recuperar a paz, o descanso, como diz o Salmo (Cf. Salmo 114, 7) e como comenta o mesmo Orígenes: «quando se diz: “Volta a teu descanso”, é sinal de que antes havia um descanso que depois se perdeu... Deus nos criou e nos fez árbitros de nossas decisões, e nos pôs no paraíso, junto a Adão. Mas, dado que por nossa livre decisão perdemos essa beatitude, terminando neste vale de lágrimas, o justo exorta a sua alma a regressar ali onde caiu... “Alma minha, recobra tua calma, que o Senhor foi bom contigo”. Se tu, alma, regressas ao paraíso, não é porque és digna, mas porque és obra da misericórdia de Deus. Se tu saíste do paraíso, foi por tua culpa; contudo, o regressar é obra da misericórdia do Senhor. Digamos também a nossa alma: “Recobra tua calma”. Nossa calma é Cristo, nosso Deus» (Orígenes-Jerônimo, «74 homilias sobre o livro dos Salmos» «74 Omelie sul libro dei Salmi», Milão 1993, pp. 409.412.413).

Quarta-feira, 26 de janeiro de 2005

Com a morte de João Paulo II, daqui por diante as catequeses passam a ser proferidas pelo Santo Padre Bento XVI.

Salmo 120(121)

O guardião do povo

Caríssimos Irmãos e Irmãs,

1. Como já havia anunciado na quarta-feira passada, decidi retomar nas catequeses o comentário dos salmos e cânticos que formam parte das Vésperas, utilizando os textos preparados por meu predecessor, João Paulo II.

O Salmo 120, que hoje meditamos, forma parte da coleção de «cânticos das ascensões», ou seja, da peregrinação para o encontro com o Senhor no templo de Sião. É um Salmo de confiança, pois nele ressoa em seis ocasiões o verbo hebreu «shamar», «custodiar», «proteger». Deus, cujo nome se evoca repetidamente, aparece como o «guardião» sempre desperto, atento e cheio de atenções, o sentinela que vela por seu povo para defendê-lo de todo risco e perigo. O canto começa com um olhar do orante dirigido para o alto, «aos montes», ou seja, as colinas sobre as quais se ergue Jerusalém: desde ali acima vem a ajuda, pois ali vive o Senhor em seu templo santo (Cf. versículos 1-2). Agora, os «montes» podem fazer referência também aos lugares nos quais surgem os santuários idólatras, as assim chamadas «alturas», condenadas com freqüência pelo Antigo Testamento (Cf. 1 Reis 3, 2; 2 Reis 18, 4). Neste caso, dar-se-ia um constante: enquanto o peregrino avança para Sião, seus olhos se fixam nos templos pagãos, que constituem uma grande tentação. Mas sua fé é firme e tem uma certeza: «O auxílio me vem do Senhor, que fez o céu e a terra» (Salmo 120, 2).

2. Esta confiança é ilustrada no Salmo com a imagem do guardião e da sentinela que vigiam e protegem. Alude-se também ao pé que não resvala (Cf. versículo 3) no caminho da vida e talvez ao pastor que na pausa noturna vela por seu rebanho sem dormir (cfr v. 4). O pastor divino não descansa no cuidado de seu povo.

Aparece depois outro símbolo, o da «sombra», que implica o reinício da viagem durante o dia ensolarado (Cf. versículo 5). Vem à mente a histórica marcha no deserto do Sinai, onde o Senhor caminha à frente de Israel «de dia em coluna de nuvem para guiá-los pelo caminho» (Êxodo 13, 21). No Saltério, com freqüência se reza deste modo: «à sombra de tuas asas esconde-me...» (Salmo 16, 8; Cf Salmo 90, 1).

3. Após a vigília e a sombra, aparece um terceiro símbolo, o do Senhor que «está à direita» de seu fiel (Cf. Salmo 120, 5). É a posição do defensor, tanto militar como em um processo: é a certeza de não ficar abandonados no momento da provação, do assalto do mal, da perseguição. Ao chegar a este ponto, o salmista remonta à idéia da viagem durante o dia quente na qual Deus nos protege do sol incandescente.

Mas ao dia segue a noite. Na antiguidade, acreditava-se que os raios lunares também era nocivos, causa de febre e cegueira, ou inclusive de loucura. Por este motivo, o Senhor nos protege também na noite (cf. versículo 6).

O Salmo chega ao final com uma declaração sintética de confiança: Deus nos custodiará com amor em todo instante, guardando nossa vida humana de todo mal (Cf. versículo 7). Cada uma de nossas atividades, resumidas com os verbos extremos de «entrar» e «sair», encontra-se sob o olhar vigilante do Senhor, cada um de nossos atos e todo nosso tempo, «agora e para sempre» (versículo 8).

4. Queremos comentar agora esta última declaração de confiança com um testemunho espiritual da antiga tradição cristã. De fato, no «Epistolário» de Barsanúfio de Gaza (falecido há metade do século VI), asceta de grande fama, ao que se dirigiam monges, eclesiásticos e leigos pela sabedoria de seu discernimento, recorda em várias ocasiões o versículo do Salmo: «O Senhor te guarda de todo mal, ele guarda tua alma». Deste modo, queria consolar quem compartilha com ele suas próprias fadigas, as provas da vida, os perigos, as desgraças.

Em uma ocasião, Barsanúfio respondeu a um monge que lhe pedia para rezar por ele e por seus companheiros incluindo em seu augúrio este versículo: «Filhos meus, amados, abraço-vos no Senhor, suplicando-lhe que vos guarde de todo mal e que vos dê a força para suportar como deu a Jó, a graça como a José, a mansidão como a Moisés, o valor nos combates como a Josué, o filho de Nun, o domínio dos pensamentos como aos juizes, o arrebatar os inimigos como aos reis Davi e Salomão, a fertilidade da terra como aos israelitas... que vos conceda a remissão de vossos pecados com a cura do corpo como ao paralítico. Que vos salve das ondas como a Pedro, que vos tire da tribulação como a Paulo e aos demais apóstolos. Que vos guarde de todo mal, como a seus verdadeiros filhos e vos conceda o que lhe pede vosso coração para o bem da alma e do corpo em seu nome. Amém» (Barsanúfio e João de Gaza, «Epistolário», 194: «Collana di Testi Patristici», XCIII, Roma 1991, pp. 235-236).

Bento XVI, quarta-feira, 4 de maio de 2005

Ap 15,3-4

Hino de adoração

1. Breve e solene, incisivo e grandioso em seu tom é o cântico que acabamos de elevar como hino de louvor ao «Senhor, Deus onipotente» (Apocalipse 15, 3). É um dos numerosos textos de oração no Apocalipse, livro de juízo, de salvação e sobretudo de esperança.

A história, de fato, não está nas mãos de forças obscuras, do azar ou de opções humanas. Ante o desencadeamento de energias malvadas, ante a irrupção veemente de Satanás, ante tantos açoites e males, eleva-se o Senhor, árbitro supremo das vicissitudes da história. Ele a guia com sabedoria à alvorada dos novos céus e da nova terra, como se canta na parte final do livro sob a imagem da nova Jerusalém (Cf. Apocalipse 21-22).

Entoem o cântico que agora meditaremos os justos da história, os vencedores da besta satânica, os que através da aparente derrota do martírio edificam na realidade o mundo novo, cujo artífice supremo é Deus.

2. Começam exaltando as obras «grandes e maravilhosas» e os caminhos justos e verdadeiros do Senhor (Cf. versículo 3). A linguagem é a característica do êxodo de Israel da escravidão do Egito. O primeiro cântico de Moisés, pronunciado após ter atravessado o Mar Vermelho, exalta o Senhor, «terrível em prodígios, autor de maravilhas» (Êxodo 15, 11). O segundo cântico, referido pelo Deuteronômio ao final da vida do grande legislador, confirma que «sua obra é consumada, pois todos seus caminhos são justiça» (Deuteronômio 32, 4).

Quer-se, portanto, reafirmar que Deus não é indiferente ante as vicissitudes humanas, mas que penetra nelas realizando seus «caminhos», ou seja, seus projetos e suas «obras» eficazes.

3. Segundo nosso hino, esta intervenção divina tem um fim preciso: ser um sinal que convida todos os povos da terra à conversão. As nações devem aprender a «ler» na história uma mensagem de Deus. A aventura da humanidade não é confusa e carente de significado, nem está submetida à prevaricação dos prepotentes e perversos.

Existe a possibilidade de reconhecer a ação de Deus na história. O Concílio Ecumênico Vaticano II, na constituição pastoral «Gaudium et spes», convida o fiel a escrutar, à luz do Evangelho, os sinais dos tempos para ver neles a manifestação da ação mesma de Deus (Cf. números 4 e 11). Esta atitude de fé leva o ser humano a reconhecer a força de Deus que atua na história, e a abrir-se assim ao temor do nome do Senhor. Na linguagem bíblica, este «temor» não coincide com o medo, mas com o reconhecimento do mistério da transcendência divina. Por este motivo, encontra-se no fundamento da fé e se entrecruza com o amor: «que te pede teu Deus senão que temas o Senhor teu Deus, que sigas todos seus caminhos, que o ames, que sirvas ao Senhor teu Deus com todo teu coração e com toda tua alma?» (cf. Deuteronômio 10, 12).

Seguindo esta linha, em nosso breve hino, tomado do Apocalipse, unem-se o temor e a glorificação de Deus: «Quem não temerá, Senhor, e glorificará teu nome?» (15, 4). Graças ao temor do Senhor, não se tem medo do mal que irrompe na história e se retoma com vigor o caminho da vida, como declarava o profeta Isaías: «Fortalecei as mãos fracas, afiançai os joelhos vacilantes. Dizei aos de coração intranqüilo: “Ânimo, não temais”» (Isaías 35, 3-4).

4. O hino conclui anunciando uma procissão universal dos povos que se apresentarão ante o Senhor da história, manifestado através de seu «juízo» (Cf. Apocalipse 15, 4). Prostrar-se-ão em adoração. E o único Senhor e Salvador parece repetir-lhes as palavras pronunciadas na última noite de sua vida terrena: «Ânimo! Eu venci o mundo» (João 16, 33).

E nós queremos concluir nossa breve reflexão sobre o cântico do «Cordeiro vitorioso» (Cf. Apocalipse 15, 3), entoado pelos justos do Apocalipse, com um antigo hino da oração vespertino, que já conhecia São Basílio de Cesaréia: «No ocaso do sol, ao ver a luz da noite, cantamos ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo de Deus. És digno de ser exaltado em todo momento com vozes santas, Filho de Deus, tu que dás a vida. Por isso, o mundo te glorifica» (S. Pricoco-M. Simonetti, «A oração dos cristãos» --«A preghiera dei cristiani»-- Milão 2000, p. 97).

Quarta-feira, 11 de maio de 2005