Salmo 71(72),1-11

O poder real do Messias

1. A Liturgia das Vésperas, cujos salmos e cânticos estamos comentando progressivamente, propõe em duas etapas um dos salmos mais queridos pela tradição judaica e cristã, o Salmo 71, um canto real que meditaram e interpretaram na chave messiânica os padres da Igreja. Acabamos de escutar o primeiro grande movimento desta oração solene (Cf. versículos 1-11). Começa com uma intensa invocação conjunta a Deus para que conceda ao soberano esse dom que é fundamental para o bom governo, a justiça. Esta se expressa sobretudo em relação aos pobres, que geralmente são as vítimas do poder.

É de notar a particular insistência com a qual o salmista sublinha o compromisso moral de reger o povo segundo a justiça e o direito: «Deus meu, confia teu juízo ao rei, tua justiça ao filho de reis, para que governe teu povo com justiça, teus humildes com retidão... Que ele defenda os humildes do povo, socorra os filhos do pobre e abata o opressor» (versículos 1-2.4).

Assim como o Senhor rege o mundo segundo a justiça (Cf. Salmo 53,7), o rei que é seu representante visível na terra --segundo a antiga concepção bíblica-- tem de uniformizar-se com a ação de seu Deus.

2. Se se violam os direitos dos pobres, não se cumpre só um ato politicamente injusto e moralmente iníquo. Para a Bíblia, perpetra-se também um ato contra Deus, um delito religioso, pois o Senhor é o tutor e o defensor dos oprimidos, das viúvas, dos órfãos (Cf. Salmo 67, 6), ou seja, de quem não tem protetores humanos.

É fácil intuir que a figura do rei davídico, com freqüência decepcionante, fora substituída – já a partir da queda da dinastia de Judá (século VI a.C.) – pela fisionomia luminosa e gloriosa do Messias, segundo a linha da esperança profética expressada por Isaías: «Julgará com justiça os fracos e sentenciará com retidão os pobres da terra» (11,4). Ou, segundo o anúncio de Jeremias, «Olhai que dias vêm --diz o Senhor-- em que suscitarei a Davi um germe justo: reinará um rei prudente, praticará o direito e a justiça na terra» (23,5).

3. Depois desta viva e apaixonante imploração do dom da justiça, o Salmo amplia o horizonte e contempla o reino messiânico-real em seu desenvolvimento através das coordenadas, as do tempo e do espaço. Por um lado, de fato, exalta-se sua duração na história (Cf. Salmo 71, 5.7). As imagens de caráter cósmico são vivas: menciona-se o passar dos dias ao ritmo do sol e da lua, assim como o das estações com a chuva e o nascimento das flores.

Um reino fecundo e sereno, portanto, mas sempre caracterizado por estes valores que são fundamentais: a justiça e a paz (Cf. versículo 7). Estes são os gestos da entrada do Messias na história. Nesta perspectiva, é iluminador o comentário dos padres da Igreja, que vêem nesse rei-Messias o rosto de Cristo, rei eterno e universal.

4. Deste modo, São Cirilo de Alexandria, em sua «Explanatio in Psalmos», observa que o juízo que Deus faz ao rei é o mesmo do que fala São Paulo: «Fazer que tudo tenha Cristo por Cabeça» (Efésios 1,10). «Em seus dias florescerá a justiça e abundará a paz», como dizendo que «nos dias de Cristo, por meio da fé, surgirá para nós a justiça e, ao orientar-nos para Deus, surgirá a abundância da paz» aos que socorre e salva este rei: e chamam-se antes de tudo «“humildes” os santos apóstolos, porque eram pobres de espírito, a nós nos salvou enquanto “filhos do pobre”, justificando-nos e santificando-nos por meio do Espírito» (PG LXIX, 1180).

5. Por outro lado, o salmista descreve também o espaço no qual se marca a realeza de justiça e de paz do rei-Messias (Cf. Salmo 71, 8-11). Aqui aparece uma dimensão universal que vai desde o Mar Vermelho ou o Mar Morto até o Mediterrâneo, do Eufrates, o grande «rio» oriental, até os mais distantes confins da terra (Cf. versículo 8), evocados com Társis e as ilhas, os territórios ocidentais mais remotos segundo a antiga geografia bíblica (cf. versículo 10). É um olhar que abarca todo o mapa do mundo então conhecido, que inclui árabes e nômades, soberanos de Estados distantes e inclusive os inimigos em um abraço universal que é cantado com freqüência pelos salmos (Cf. Salmos 46, 10; 86,1-7) e pelos profetas (Cf. Isaías 2,1-5; 60, 1-22; Malaquias 1,11).

O broche de outro desta visão poderá formular-se com as palavras de um profeta, Zacarias, palavras que os Evangelhos aplicarão a Cristo: «Exulta sem freio, filha de Sião, grita de alegria, filha de Jerusalém! Eis aí que vem a ti teu rei. É justo... Ele vai dispensar os carros de guerra em Israel e os cavalos em Jerusalém, será suprimido o arco de combate, e proclamará a paz às nações. Seu domínio irá de mar a mar e desde o Rio até os confins da terra» (Zacarias 9, 9-10; Cf. Mateus 21, 5).

Quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

Salmo 71(72),12-19

Canto ao «Reino de paz e benção» do Senhor.

1. A Liturgia das Vésperas, que estamos seguindo através da série de seus salmos, propõe-nos em duas etapas distintas o Salmo 71, um hino real-messiânico. Depois de ter meditado na primeira parte (Cf. versículos 1-11), vem agora o segundo movimento poético e espiritual deste canto dedicado à figura gloriosa do rei Messias (Cf. versículos 12-19). Antes de tudo há que sublinhar que o final dos últimos dois versículos (Cf. 18-19) é na realidade um adendo litúrgico sucessivo ao Salmo.

Trata-se, de fato, de uma breve, ainda que intensa, benção que tinha que selar o segundo dos cinco livros nos que a tradição judaica havia dividido a coleção dos 150 salmos: este segundo livro começava com o Salmo 41, o da corça sedenta, símbolo luminoso da sede espiritual de Deus. Agora, este canto de esperança em uma era de paz e justiça conclui essa seqüência de salmos, e as palavras da benção final são uma exaltação da presença eficaz do Senhor já seja na história da humanidade, onde «faz maravilhas» (versículo 18), seja no universo criado, cheio de sua glória (Cf. versículo 19).

2. Como já sucedia na primeira parte do Salmo, o elemento decisivo para reconhecer a figura do rei messiânico é sobretudo a justiça e seu amor pelos pobres (Cf. versículos 12-14). Estes só têm a Ele como ponto de referência e manancial de esperança, pois é o representante visível de seu único defensor e patrono, Deus. A história do Antigo Testamento ensina que os soberanos de Israel, na realidade, desmentiram com demasiada freqüência este compromisso seu, prevaricando com os fracos, com os indigentes e os pobres.

Por este motivo, agora o olhar do salmista se dirige para um rei justo, perfeito, encarnado pelo Messias, o único soberano disposto a resgatar os oprimidos «da violência» (cf. versículo 14). O verbo hebreu utilizado é o jurídico do protetor dos últimos e das vítimas, aplicado também a Israel, «resgatada» da escravidão quando estava oprimida pela potência do faraó.

O Senhor é o «resgatador-redentor» primário que atua visivelmente através do rei-Messias, defendendo «a vida» e «o sangue» dos pobres, seus protegidos. «A vida» e «o sangue» são a realidade fundamental da pessoa, são a representação dos direitos e da dignidade de cada um dos seres humanos, direitos com freqüência violados pelos potentes e pelos prepotentes deste mundo.

3. O Salmo 71 conclui, em sua redação original, antes da antífona final mencionada, com uma aclamação em honra do rei-Messias (Cf. versículos 15-17). É como uma trombeta que acompanha um coro de auspícios e bons desejos dirigidos ao soberano, a sua vida, a seu bem-estar, a sua benção, à permanência de sua recordação nos séculos. São elementos que permanecem ao estilo de formas de uma corte, com sua ênfase própria. Mas estas palavras alcançam sua verdade na ação do rei perfeito, esperado e desejado, o Messias.

Segundo uma característica dos cânticos messiânicos, toda a natureza fica envolvida em sua transformação que antes de tudo é social: o trigo será tão abundante que se converterá como em um mar de espigas cujas ondas chegam até os cumes dos montes (Cf. versículos 16). É o sinal da benção divina que se difunde em plenitude sobre uma terra pacificada e serena. E mais, toda humanidade, deixando cair e cancelando toda divisão, convergirá para este soberano de justiça, realizando deste modo a grande promessa feita pelo Senhor a Abraão: que «o proclamem ditoso todas as raças da terra» (versículo 17; Cf. Gêneses 12, 3).

4. No rosto deste rei-Messias, a tradição cristã intuiu o retrato de Jesus Cristo. Em seu «Comentário ao Salmo 71», Santo Agostinho faz uma leitura em chave cristológica na qual explica que os indigentes e os pobres aos que Cristo sai em sua ajuda são «o povo dos crentes n’Ele». E mais, recordando os reis mencionados precedentemente pelo Salmo, declara que «neste povo se incluem também os reis que o adoram. Não desdenharam fazer-se indigentes e pobres, ou seja, confessar humildemente seus pecados e reconhecer-se necessitados da glória e da graça de Deus para que esse rei, filho do rei, libertasse-os do potente», ou seja, de Satanás, o «caluniador», o «forte». «Mas nosso Salvador humilhou caluniador e entrou na casa do forte, levando suas riquezas depois de tê-lo encadeado; ele “libertou o indigente do potente e o pobre que não tinha a ninguém para ajudá-lo”. Nenhuma potência criada tinha podido fazer isto, nem a de qualquer homem justo, nem sequer a de um anjo. Não havia ninguém que fosse capaz de salvar-nos; por isso veio Ele, em pessoa, e nos salvou» (71, 14: «Nueva Biblioteca Agustiniana» -- «Nuova Biblioteca Agostiniana» --, XXVI, Roma 1970k, pp. 809.811).

Quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

Ap 11,15;12,10.12

O juízo de Deus

1. O hino que acaba de ressoar descende idealmente do céu. De fato, o Apocalipse, ao apresentá-lo, entrelaça sua primeira parte (Cf . 11, 17-18) com os «vinte e quatro anciãos que estavam sentados em seus tronos diante de Deus» (11,16) e, na segunda estrofe (Cf. 12, 10-12), com «com uma forte voz no céu» (12, 10).

Ficamos envolvidos deste modo na grandiosa representação da corte divina, na qual Deus e o Cordeiro, ou seja, Cristo, rodeados do «conselho da coroa», estão julgando a história humana no bem e no mal, mostrando seu fim último de salvação e glória. Os cantos que salpicam o Apocalipse têm a função de ilustrar o tema do senhorio divino que rege o devir com freqüência desconcertante das vicissitudes humanas.

2. Neste sentido, é significativa a primeira passagem do hino posto nos lábios dos vinte e quatro anciãos que parecem encarnar o povo da eleição divina, em suas duas etapas históricas, as doze tribos de Israel e os doze apóstolos da Igreja.

Agora, o Senhor Deus onipotente e eterno estabeleceu «o poderio e o reinado» (11, 17), e sua entrada na história não só tem o objetivo de bloquear as reações violentas dos rebeldes (Cf. Salmo 2, 1.5), mas sobretudo o de exaltar e recompensar os justos. Estes são definidos com uma série de termos utilizados para delinear a fisionomia espiritual dos cristãos. São «servos» que aderem à lei divina com fidelidade; são «profetas», dotados da palavra revelada que interpreta e julga a história; são «santos», consagrados a Deus e respeitosos de seu nome, ou seja, dispostos a adorá-lo e a seguir sua vontade. Entre eles há «pequenos» e «grandes», expressão amada pelo autor do Apocalipse (Cf. 13, 16; 19,5. 18; 20, 12) para designar o povo de Deus em sua unidade e variedade.

3. Deste modo, passamos à segunda parte de nosso cântico. Depois da dramática cena da mulher grávida «vestida de sol» e do terrível dragão vermelho (Cf. 12, 1-9), uma voz misteriosa entoa um hino de ação de graças e de alegria.

A alegria está no fato de que Satanás, o antigo adversário, que atuava na corte celeste de «acusador de nossos irmãos» (12, 10), como vemos no livro de Jó (Cf. 1, 6-11; 2, 4-5), foi «precipitado» do céu e portanto já não tem um grande poder. Sabe «que lhe fica pouco tempo» (12, 12), porque a história está a ponto de experimentar um giro radical de libertação do mal e, por isso, reage «com grande furor».

Por outro lado, aparece Cristo ressuscitado, cujo sangue é princípio de salvação (Cf. 12, 11). Recebeu do Pai um poder de governo sobre todo o universo; nele se cumprem «a salvação, a força e o reino de nosso Deus».

À sua vitória estão associados os mártires cristãos que optaram pelo caminho da cruz, ao não ceder ao mal e a sua virulência, mas que se entregaram ao Pai e se uniram à morte de Cristo através de um testemunho de entrega e de valor que os levou a «desprezar a vida até a morte» (ibidem). Parece escutar-se o eco das palavras de Cristo: «Quem ama sua vida, perde-a; e quem odeia sua vida neste mundo, guarda-la-á para uma vida eterna» (João 12, 25).

4. As palavras do Apocalipse sobre os que venceram Satanás e o mal «em virtude do sangue do Cordeiro» ressoam em uma esplêndida oração atribuída a Simeão, bispo de Seleucia e Ctesifonte, na Pérsia. Antes de morrer como mártir com outros muitos companheiros, em 17 de abril de 341, durante a perseguição do rei Sapor, dirigiu a Cristo a seguinte súplica:

«Senhor, dai-me esta coroa: tu sabes que sempre a desejei porque te amei com toda a alma e com toda minha vida. Serei feliz ao ver-te e tu me darás o descanso... quero perseverar heroicamente em minha vocação, cumprir com fortaleza a tarefa que me foi designada e ser exemplo para todo o povo do Oriente... receberei a vida que não conhece nem pena, nem preocupação, nem angústia, nem perseguidor, nem perseguido, nem opressor, nem oprimido, nem tirano, nem vítima; ali já não verei a ameaça do rei, nem os terrores dos prefeitos; ninguém me convocará ante os tribunais nem me seguirá atemorizado, ninguém me prenderá, nem me assustará. As feridas de meus pés se curarão em ti, caminho de todos os peregrinos; o cansaço de meus membros encontrará descanso em ti, Cristo, crisma de nossa unção. Em ti, cálice de nossa salvação, desaparecerá a tristeza de meu coração, em ti, nosso consolo e alegria, enxugar-se-ão as lágrimas de meus olhos» (A. Hamman, «Orações dos primeiros cristãos» --«Preghiere dei primi cristiani», Milão. 1955, pp. 80-81).

Quarta-feira, 12 de janeiro de 2005