1. Continua a nossa reflexão sobre os textos dos Salmos, que constituem o elemento substancial da Liturgia das Vésperas. O que agora fizemos ressoar nos nossos corações foi o Salmo 10, uma breve oração de confiança que, no original hebraico, está marcada pelo sagrado nome divino, 'Adonai, o Senhor. Este nome ressoa na abertura (cf. v. 1), encontra-se três vezes no centro do Salmo (cf. vv. 4-5) e volta no fim (cf. v. 17). A tonalidade espiritual de todo o cântico é muito bem expressa pelo versículo conclusivo: "O Senhor é justo e ama a justiça". É esta a raiz de qualquer confiança e a fonte de toda a esperança no dia da obscuridade e da prova. Deus não permanece indiferente em relação ao bem e ao mal, é um Deus bom e não um acontecimento obscuro, indecifrável e misterioso.
2. O Salmo desenvolve-se substancialmente em dois cenários. No primeiro (cf. vv. 1-3) está descrito o ímpio no seu triunfo aparente. Ele é caracterizado por imagens de tipos bélico e venial: é o pervertido, que retesa o arco da guerra ou da caça para disparar com violência contra as suas vítimas, isto é, os de coração reto (cf. v. 2). Por isso, eles são tentados pela idéia de evadir e de se libertar de uma presa tão implacável. Gostaria de fugir "para o monte como as aves" (v. 1), longe do vórtice do mal, do assédio dos malvados, das setas das calúnias lançadas à traição pelos pecadores. Há uma espécie de desconforto no fiel que se sente só e impossibilitado face à irrupção do mal. Parece que os fundamentos da justa ordem social são abalados e as próprias bases da convivência humana estão ameaçadas. (cf. v. 3).
3. Eis então a mudança, traçada no segundo cenário (cf. vv. 4-7). O Senhor, sentado no seu trono celeste, abrange com o seu olhar penetrante todo o horizonte humano. Daquele lugar transcendente, sinal da onisciência e da onipotência divina, Deus pode perscrutar e examinar cada pessoa, distinguindo o bem do mal e condenando com vigor a injustiça (cf. vv. 4-5).
É muito sugestiva e confortadora a imagem dos olhos divinos, cujas pupilas contemplam e observam as nossas ações. O Senhor não é um remoto soberano, fechado no seu mundo dourado, mas uma Presença vigilante que se declara da parte do bem e da justiça. Ele vê e providencia, intervindo com a sua palavra e com a sua ação. O justo prevê que, como acontecera em Sodoma (cf. Gn 19, 24), o Senhor "fará chover sobre os ímpios carvões acesos e enxofre" (Sl 10, 6), símbolos do juízo de Deus que purifica a história, condenando o mal. O ímpio, atingido por esta chuva ardente, que prefigura o seu destino último, experimenta fielmente que "há um Deus que faz justiça sobre a terra" (Sl 57, 12).
4. Contudo, o Salmo não se conclui com este quadro trágico de punição e de condenação. O último versículo abre o horizonte para a luz e para a paz que se destinam ao justo que contempla o seu Senhor, juiz justo, mas sobretudo libertador misericordioso: "os homens honestos contemplarão a sua face" (Sl 10, 7). Trata-se de uma experiência alegre de comunhão e de confiança serena no Deus que liberta do mal. Fizeram uma experiência como esta os numerosos justos ao longo da história. Muitas narrações descrevem a confiança dos mártires cristãos face às atrocidades e a sua determinação que não evitava a prova.
Nos Atos de Euplo, diácono de Catânia, falecido por volta de 304 sob Diocleciano, o mártir exclama espontaneamente esta seqüência de orações: "Obrigado, ó Cristo: protege-me porque sofro por ti... Adoro o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Adoro a Santíssima Trindade... Obrigado, ó Cristo. Vem em meu auxílio, ó Cristo! Sofro por ti, ó Cristo... É grande a tua glória, ó Senhor, nos servos que te dignaste chamar a ti!... A ti dou graças, Senhor Jesus Cristo, porque a tua força me confortou; não consentiste que a minha alma perecesse com os ímpios e concedeste-me a graça do teu nome. Agora confirma o que fizeste em mim, para que seja confundida a impudência do Adversário" (A. HAMMAN, Orações dos primeiros cristãos, Milão 1995, págs. 72-73).
Quarta-feira, 28 de Janeiro de 2004
1. O Salmo 14, que é oferecido à nossa reflexão, muitas vezes é classificado pelos estudiosos da Bíblia como parte de uma "liturgia de entrada". Como acontece com algumas composições do Saltério (cf. por exemplo, os Salmos 23, 25 e 94), pode-se pensar numa espécie de procissão de fiéis que se agrupa às portas do templo de Sião para aceder ao culto. Num diálogo ideal entre fiéis e levitas delineiam-se as condições indispensáveis para ser admitido à celebração litúrgica e, por conseguinte, à intimidade divina.
De fato, por um lado, surge a pergunta: "Quem poderá, Senhor, habitar no teu santuário? Quem poderá residir na tua montanha santa?" (Sl 14, 1). Por outro, eis o elenco das qualidades exigidas para passar o limiar que leva ao "santuário", ou seja, ao templo na "montanha santa" de Sião. As qualidades enumeradas são onze e constituem uma síntese ideal dos compromissos morais de base, presentes na lei bíblica (cf. vv. 2-5).
2. Nas fachadas dos templos egípcios e babiloneses por vezes eram gravadas as condições exigidas para poder entrar no ambiente sagrado. Devemos notar uma diferença significativa com as que são sugeridas pelo nosso Salmo. Em muitas culturas religiosas é requerida, para ser admitido à presença da Divindade, sobretudo a pureza ritual exterior que comporta purificações, gestos e vestes particulares.
Ao contrário, o Salmo 14 exige a purificação da consciência, para que as suas opções sejam inspiradas no amor pela justiça e pelo próximo. Portanto, sente-se nestes versículos o espírito dos profetas que convidam repetidamente a conjugar a fé e a vida, oração e compromisso existencial, adoração e justiça social (cf. Is 1, 10-20; 33, 14-16; Os 6, 6; Mq 6, 6-8; Jr 6, 20).
Ouçamos, por exemplo, a veemente repreensão do profeta Amós, que denuncia em nome de Deus um culto separado da história quotidiana: "Eu detesto e rejeito as vossas festas, e não sinto nenhum gosto nas vossas assembléias. Se me ofereceis holocaustos e oblações, não as aceito, nem ponho os meus olhos no sacrifício das vossas vítimas gordas... Antes, jorre a equidade como uma fonte, e a justiça como torrente que não seca" (5, 21-22.24).
3. Tratemos agora os onze compromissos enumerados pelo Salmista, que poderão constituir a base de um exame de consciência pessoal todas as vezes que nos prepararmos para confessar as nossas culpas a fim de sermos admitidos à comunhão com o Senhor na celebração litúrgica.
Os três primeiros compromissos são genéricos e exprimem uma opção ética: seguir o caminho da integridade moral, da prática da justiça e, por fim, da sinceridade perfeita ao falar (cf. Sl 14, 2). Seguem-se três deveres que poderíamos definir de relação com o próximo: eliminar a calúnia da linguagem, evitar qualquer ação que possa prejudicar o irmão, impedir os insultos contra quem vive ao nosso lado todos os dias (cf. v. 3). Vem depois o pedido de uma opção clara de posição no âmbito social: desprezar o malvado, honrar quem teme Deus. Por fim, enumeram-se os três últimos preceitos sobre o modo como examinar a consciência: ser fiéis à palavra dada, ao juramento, mesmo que isso nos cause conseqüências danosas; não praticar a usura, chaga que ainda nos nossos dias é uma realidade vil, capaz de aniquilar a vida de muitas pessoas e, por fim, evitar qualquer forma de corrupção na vida pública, outro compromisso que se deve saber praticar com rigor também no nosso tempo (cf. v. 5).
4. Seguir este caminho de decisões morais autênticas significa estar preparado para o encontro com o Senhor. Também Jesus, no Sermão da Montanha, proporá uma "liturgia de entrada" essencial: "Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão" (Mt 5, 23-24).
Quem age da maneira indicada pelo Salmista conclui-se na nossa oração "não há-de sucumbir para sempre" (Sl 14, 5). Santo Hilário de Poitiers, Padre e Doutor da Igreja do quarto século, no seu Tractatus super Psalmos comenta assim este final do Salmo, relacionando-o à imagem inicial do templo de Sião: "Agindo de acordo com estes preceitos, mora-se no santuário, repousa-se no monte. Por conseguinte, permanecem salvaguardadas a observação dos preceitos e a obra dos mandamentos. Este Salmo deve estar fundado no íntimo, escrito no coração, anotado na memória; o tesouro da sua rica brevidade deve ser confrontado conosco em todos os momentos. E assim, adquire esta riqueza no caminho rumo à eternidade e habitando na Igreja, poderemos finalmente repousar na glória do corpo de Cristo" (PL 9, 308).
Quarta-feira, 4 de Fevereiro de 2004
1. O maravilhoso hino de "bênção", que abre a Carta aos Efésios e que é proclamado todas as segundas-feiras na Liturgia das Vésperas, será objeto de uma série de meditações ao longo do nosso itinerário. Por agora contentamo-nos com dar um olhar genérico a este texto solene e bem estruturado, como que uma majestosa construção, destinada a exaltar a maravilhosa obra de Deus, realizada para nós em Cristo. Parte-se de um "antes" que antecede o tempo e a criação: é a eternidade divina na qual um projeto que nos supera já tem vida, uma "pré-destinação", ou seja, o desígnio amoroso e gratuito de um destino de salvação e de glória.
2. Neste projeto transcendente, que inclui a criação e a redenção, o cosmos e a história humana, Deus tinha pré-estabelecido, "na sua benevolência", de "recapitular em Cristo", isto é, de reconduzir a uma ordem e a um sentido profundo todas as realidades, as celestes e as terrenas (cf. 1, 10). Sem dúvida, Ele é "cabeça da Igreja, que é o seu Corpo" (cf. 1, 22-23), mas é também o princípio vital de referência do universo. Por isso, o senhorio de Cristo expande-se quer à criação quer àquele horizonte mais específico que é a Igreja. Cristo desempenha uma função de "plenitude", de tal forma que nele se revele o "mistério" (1, 9) escondido nos séculos e toda a realidade cumpra na sua ordem e grau específicos o desígnio concebido pelo Pai desde a eternidade.
3. Como teremos ocasião de ver a seguir, esta espécie de Salmo neotestamentário fixa a atenção sobretudo na história da salvação que é expressão e sinal vivo da "generosidade" (1, 9), da "graça" (1, 9) e do amor divino. Eis, então, a exaltação da "redenção mediante o sangue" da cruz, a "remissão dos pecados", a abundante efusão "da riqueza da graça" (1, 7). Eis a filiação divina do cristão (cf. 1, 5) e o "conhecimento do mistério da vontade" de Deus (1, 9), mediante a qual se entra no íntimo da própria vida trinitária.
4. Depois deste olhar genérico ao hino que abre a Carta aos Efésios, escutemos agora São João Crisóstomo, extraordinário mestre e orador, intérprete agudo da Sagrada Escritura, que viveu no IV século e foi também Bispo de Constantinopla, entre dificuldades de todos os tipos, e submetido até à experiência do dúplice exílio. Na sua primeira homilia sobre a Carta aos Efésios, ao comentar este Cântico, ele reflete com reconhecimento sobre a "bênção" com a qual fomos abençoados "em Cristo": "De fato, que te falta? Tornaste-te imortal, livre, filho, justo, irmão, co-herdeiro, com ele reinas, com ele és glorificado. Tudo nos foi dado e como está escrito "como não nos havia de oferecer tudo juntamente com Ele" (Rm 8, 32). A tua primícia (cf. 1 Cor 15, 20.23) é adorada pelos anjos, pelos querubins, pelos serafins: que mais te falta?" (PG 62, 11). Deus fez tudo isto por nós, continua o Crisóstomo, "segundo a benevolência da sua vontade". Que significa isto? Significa que Deus apaixonadamente deseja e ardentemente anseia pela nossa salvação. "E por que nos ama desta forma? Por que motivo nos quer tanto bem? Só por bondade: com efeito, a "graça" é própria da bondade" (Ibid., 13).
Precisamente por isto, conclui o antigo Padre da Igreja, São Paulo afirma que tudo foi cumprido "para louvor e glória da sua graça que nos concedeu em seu Filho predileto". De fato, Deus "não só nos libertou dos pecados, mas tornou-nos também amáveis..: ornamentou a nossa alma e tornou-a bela, desejável e amável". E quando Paulo declara que Deus fez isto mediante o sangue do seu Filho, São João Crisóstomo exclama: "Nada é maior do que tudo isto: que o sangue de Deus tenha sido derramado por nós. Maior do que a adoção de filhos e de outros dons, é o fato de nem sequer o Filho ter sido poupado (cf. Rm 8, 32); com efeito, é grandioso que os pecados tenham sido perdoados, mas ainda mais grandioso é que isto se verificou mediante o sangue do Senhor" (Ibid., 14).
Quarta-feira, 18 de Fevereiro de 2004